A ferradura, o casco e os sapatos


Sabe por que o cavaleiro coloca a ferradura no casco do cavalo? Para preservá-lo diante do duro asfalto ou da estrada de pedra moldada. É o que fazemos também com nossos pés: os protegemos com sapatos ou chinelos para não machucá-los na aspereza asfáltica.
Mas do que cavalo gosta mesmo é de sair por aí correndo livremente, sentido a maciez da relva e a textura da terra, a relinchar feliz, ao gosto da liberdade, com todo risco que a natureza lhe reserva. Caso tropece e caia, a naturalidade do tombo não deixará marcas, certamente: todo tropeço é natural.
É assim com a língua. Nós, os cavaleiros, temos de protegê-la com uma ferradura: as normas (gramática). Principalmente quando o caminho é de asfalto formal e cheio de marcas que regram o fluxo. Precisamos usar a língua com  cuidado para não ferirmos o casco do cavalo, senão cavalos sem ferraduras seremos para muitos. O não uso da ferradura é sinal de constrangimento, de envergonhamento alheio, por estamos pondo em risco os próprios pés (a língua).
O problema é que, assim como o cavalo, a gente gosta também é de correr pela relva, pisar na areia, molhar-se na água. Mas tudo isso não cai bem se estamos de sapato-ferradura. Sapatos só é bom para pisar no asfalto, na pedra moldada. Fora disso, o lugar  dos sapatos é a sapateira, num canto escondido da casa. Mas também é bom saber que eles estão bem ali armazenados na sapateira. Porque quando a gente precisar ir para o asfalto novamente, a gente vai e escolhe um sapato que nos caiba nos pés para melhor caminharmos, sabedores de onde estamos pisando - ainda que doidos de vontade para chegamos ao fim do asfalto.
Então é assim: o cavaleiro protege o casco do cavalo da aspereza do asfalto com a ferradura. Mas na relva, na grama, na areia leve, o liberta da ferradura porque têm coisas que não é agradável para o bicho fazer com ferro no casco. A gente também protege os pés com o sapato quando estamos no asfalto, e isso é bom. Mas têm coisas que é mais apropriado para nós de fazer sem sapatos. Daí a gente vai e os tiras dos pés para fazer melhor.
As normas da língua  devem ser vistas como  uma referência, uma proteção, uma espécie de preservação da língua, como a ferradura para o casco e os sapatos para os pés, mas nunca como uso para sempre recomendado. Às vezes, precisamos nos livrar dos sapatos, assim como o cavalo precisa se livrar da ferradura. A língua é como o casco e os pés da comunicação e tem de ser usada por nós conforme o terreno em que pisamos (o contexto, a situação, a função ).
Quando alguém se meter a afirmar que o que foi dito, foi dito de forma errada, talvez este alguém esteja usando a ferradura ou o sapato da formalidade, com a qual não se pode sentir a verdadeira textura do dito: onde, quando, como, para quem, para quê.
O sapato-ferradura da formalidade, às vezes, mais machuca do que o tropeço da naturalidade. E fora do natural, sem ferradura-sapato, a dor do preconceito é irremediável. Por isso,  em se tratando de linguagem, o melhor a fazermos é lustramos bem os sapatos, cuidarmos bem da ferradura do cavalo para o caso de serem necessários usá-los. Senão, o melhor é andar descalço mesmo ou deixarmos que o cavalo nos leve, sem ferraduras a impedi-lo, pelos diversos caminhos que a língua nos oferece.

Comentários

Anônimo disse…
Que legal.

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