Sobre trabalho, dar aulas e resignação



O professor estava prestes a retomar o assunto sobre texto e discurso, interrompido na aula anterior pelo som da sirene, quando um aluno, do grupo dos mais reiterados, o interrompeu, perguntando:
- Professor, o senhor trabalha ou só dá aulas?
Raro um professor com mais de dez anos de giz na mão (e pó na cara, pois é assim que é) que já não tenha ouvido isso. Ainda mais dito assim: sem nenhum zelo de quem diz com o dizer, por ser quem diz: um jovem aluno, do segundo ano do Ensino Médio. Apenas como um ingênuo pretexto para infringir na aula.
Uma esparrela, portanto, né mesmo? creditou o professor. Mas nem por isso indigna de atenção, ponderou: era preciso relevar o assunto. Precisava somente de uma boa dialética-pedagógica. Tipo assim: o que dizer e como dizer do que foi dito.
Por isso, fingiu desatenção:
- Não entendi, disse.
- Dizem que professor não trabalha, só dá aula.
Repetiu o menino, do mesmo jeito. Sem compromisso. Somente um ingênuo e dissimulado sorriso nos lábios agora (compreensível). O professor então perguntou, procurando a melhor pedagogia:
- E você o que pensa disso que dizem?
- Não sei, não sou professor, respondeu de pronto o menino.
O professor o encarou com resignação, a fim de não perder a chance do diálogo (eis a mansidão freireana que todo professor que ensina certo tem). Queria poder lhe dizer que já faz tempo que dar aulas é o que menos o professor faz (não por culpa só dele, professor, claro). Mas não disse. Foi pedagógico. Ressaltou apenas:
- Um médico só faz o que ele faz ou também trabalha?
- Como assim?! Disse o menino, sem fingimento.
É que, em que pesasse ser ele um adolescente do século XXI, e dos mais reiterados (além de totalmente conectado com o mundo virtual), o professor percebeu que o debate não estava a sua altura. Não tinha culpa. O discurso não era dele. Tinha virado lugar comum.
Em tempo, recorreu a Bakhtin. Discípulos do filósofo russo lhe disseram certa vez: todo discurso é dialógico. Quer dizer: todo dizer é dito a partir do que já foi uma vez dito, ou seja, de outro discurso. Seja para reafirmar ou refutar. E ponderou de novo: decerto, o menino queria apenas saber por que diziam isso de professor. Por isso, sem compromisso. Era um discurso comum. Certamente ele, o aluno, e tantos outros já tinham se costumado a ouvir e a dizer que professor não trabalha (só dá aulas).
“Dá sua aulinha, aí!”, dizem certos alunos. Como se dissessem: “não faz nada mesmo”. Até quem não devia também pensa assim: “Dá sua aula e pronto, professor; se preocupar pra quê”, diz um colega, claro que com intuito de colaboração.  Mas diz. É mesmo um dizer comum.
Pois é. Para muitos, textos e discursos são a mesma coisa. Mas conforme o dizer bakhtiniano, em discursos comuns o que muda é o texto, o enunciado, a enunciação (do latim enuntiatĭo, que quer dizer “exposição”, “proposição”, “narração”, ato ou efeito de enunciar, dizer). Isto é, a forma de dizer. O discurso permanece em sua intencionalidade (do latim intentionem, aquilo que se volta para uma determinada finalidade). O menino apenas repetiu o que dizem de professor hoje em dia, hipotetizou o professor. Não tinha culpa.
Era preciso então saber como dizer isso com (e para) um menino. Era preciso satisfazê-lo sobre o que ele queria saber: se professor trabalhava ou só dava aula. Porque se ele soubesse o que, de fato, faz um professor nem sequer perderia tempo.
Saberia que manter os alunos em sala, por exemplo, é sua primeira atribuição. Tanto para pais como para os saberes hierárquicos da educação.
Que manter os diários (sim, os diários, porque chegam a ser muitos) devidamente preenchidos, então, nem se fala. Vale até título de “comprometimento” (espécie de honra ao mérito).
E pasmem: Saberia, por exemplo que, já há algum tempo, o que o professor menos faz é “dar aulas”.
Então, era preciso fazer como um professor progressista faria: dizer sem medo de dizer, sem medo de parecer indisciplinado, inoportuno. Se o menino soubesse não perderia tempo porque, claro, já sabia.
Daí insistiu o professor, aperfeiçoando o que acreditava ser uma boa pedagogia dialética:
- Um pedreiro, ao chegar na obra, já chega assentando tijolos?
Espantoso o silêncio do menino agora.
O professor sabia, porque já tinha ouvido Freire dizer, que o espanto de um aluno é o melhor estímulo para um professor. Ainda mais feito assim por quem fez: um jovem aluno do Ensino Médio, reiterado e dissimulado. Não um silêncio que nada importa. Mas o silêncio que diz estou pronto a ouvir, quero saber. Então o professor aproveitou e disse:
- Claro que não. Antes ele prepara o espaço. Escolhe as ferramentas (as que melhor lhe convém a realizar o trabalho). Calcula a massa. Confere o andaime. Ouve o mestre de obras (às vezes, o engenheiro). Orienta o ajudante... Assentar tijolos talvez seja dos seus afazeres somente o que mais aparece.
E como o aluno manteve o silêncio, queria saber, disse sem medo de ser inoportuno, como um professor que ensina certo:
- Assim é o professor, meu caro. As ferramentas são as metodologias que desenvolve; o cálculo, os projetos que prescreve e reescreve; o andaime, os planos de aulas que elabora e reelabora; ouvir o mestre, as reuniões das quais participa; orientar o ajudante, o zelo que tem por quem ensina, VOCÊ... Dar aulas talvez seja das suas atribuições somente a que mais aparece. E a que menos importa hoje em dia, parece?
Dizendo isso, e esperançoso do efeito de sua pedagogia, o professor faz menção de voltar ao assunto da aula anterior, texto e discurso, quando novamente é interrompido. Desta vez por leves batidas na porta da sala. Era a coordenadora.
- Com licença, professor. O computador parou de novo. A Márcia (de matemática) tá na Oficina,...O Pedro (de EF), com os meninos nos jogos, ... E o Jorge (de física), foi representar a diretora na Secretaria. Sobrou pro senhor mais uma vez. Sinto muito.
De novo resignado (a resignação é uma constante na vida de um professor), ele achou a interrupção bem oportuna (tinha de ser oportunista em algum momento, por que não?). E quase agradeceu a colega pelo aporte involuntário (ela também não tinha culpa), porque o fez lembrar de dizer ao menino: “Sem falar nas atribuições extra ofício, viu?”  (Numa obra, um pedreiro diria que pintar paredes, por exemplo, nada têm a ver com ser pedreiro. E talvez não fosse. Pesou em dizer também)
Mas o menino, não mais em silêncio agora (apenas ingênuo e dissimulado), se antecipou dizendo:
- Vai lá, professor, afinal trabalhar um pouco não faz mal a ninguém?  
O olhar de mansidão do professor (que queria somente que o menino tivesse compreendido seu discurso) fez-se mais intenso, de quase carícia. Mas ainda não foi desta vez. Pensou o professor. Sua pedagogia, talvez, é que não estava a altura da ingenuidade do aluno. Que pena! Pediu licença à turma e saiu. Voltaria logo.

Comentários

Unknown disse…
Muito bom rsrs.
Tadinho desse aluno...Sabe de nada,inocente!
Dayane disse…
Realmente não é um trabalho e sim uma missão, que cada dia que passa considero ainda mais impossível.

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