O fracasso do imperador

Por Betto Ferreira

Muito se discute hoje os desmandos da educação escolar. Mas, a meu ver, entre outras coisas, para que toda educação e/ou ensinamento surtam o efeito esperado é preciso, antes de tudo, que o outro acredite ou esteja predisposto a acreditar naquilo que temos a ensinar. Caso contrário, a intenção de educar/ensinar cai no abismo da escuridão, junto com toda a nossa ilusão de (in)competência que nos foi conferida pela sociedade.
Em O clube do Imperador o professor de História, Willian Hundert, tenta a todo custo estimular um aluno ao gosto pelos estudos a fim de faze-lo um Sr Júlio Cesar*. Como não conseguiu mudar o que fora plantado no início da formação do caráter do aluno e com isso, quem sabe, transformar o seu destino, o professor se sentiu um profissional fracassado.
O drama do professor é, na verdade, uma metáfora do drama de todos nós, professores do chamado mundo moderno, que, por pressão da sociedade ou por ilusão da profissão, sente-se na obrigação de interferir na condição humana do outro. Trágico engano.
Tal competência não é exclusividade somente de quem educa e/ou ensina, é também de quem quer ser educado e/ou ensinado. Como, de acordo com Olivier Reboul (Introdução à retórica, 1988), educar e/ou ensinar são atos praticados por meio da persuasão interativa, utilizando-se de argumentos ou atitudes argumentativas, toda educação ou todo ensinamento, em qualquer fase da vida, só terá efeito se o outro, ou seja, aquele a quem pretendemos atingir com nosso conhecimento, estiver predisposto a receber, com a devida importância, aquilo que ensinamos. E a predisposição de aprender, no caso da educação escolar, está acima do professor. Tem a ver com a cultura de valor de um povo.
Por uma ou outra razão – quem sabe por influência da educação doméstica, na adolescência; quem sabe por seu próprio interesse, quando adulto –, no caso do aluno do filme, alguma coisa fez dele um sujeito predisposto às idéias da ambição e da arrogância, por isso persuadido, desde cedo, a ser o homem ambicioso e arrogante, no que se tornou.
Os princípios morais e éticos presentes no discurso do professor podem até ter contribuído como reforço a posição contrária do rapaz - afinal, é em função do que o outro diz que formulamos nossas respostas, segundo as teorias da retórica clássica e moderna. Mas não foram suficientemente convincentes para que moldassem, muito menos mudassem, o seu caráter, como pretendia o professor.
Fracassados nos sentimos todos diante de situações como a que viveu Hundert. Não só nós professores, mas todos aqueles que lidam diretamente com questões de ordem emocional. Afinal, ao contrário do que se imagina, somos também sensíveis a emoções. Talvez por isso, pretendemos ainda muitas vezes, como foi o caso da personagem, assumir a figura do sacerdote, cuja missão é mudar o (des)caminho da vida de cada um. Em especial nos dias de hoje, quando se sabe que estão em evidências vários outros fatores sociais que concorrem diretamente ou indiretamente, e com maior peso, contra as matérias e disciplinas escolares, o sacerdotismo pedagógico é uma máscara que muitos insistem em usa-la. Vai ver que é porque nos falta alguém dizer que não somos os únicos responsáveis pelos problemas de ordem moral ou ética da humanidade.
Soluções paliativas como a receita da aprovação automática, a pretexto de evitar a repetência e o desestímulo, parece ter sido um remédio inadequado e extremamente perigoso. No filme, o professor tentou remediar o aluno ao forjar sua nota a fim de curá-lo da arrogância, a fim de torna-lo um imperador perante os outros alunos. O resultado, como se viu, foi dramático: além de arrogante, a exemplo do pai, o rapaz se tornou um homem ambicioso, um valor altamente maléfico à humanidade, quando utilizado de forma inadequado e que em nada contribua para o histórico social.
Portanto, mais que depressa, é preciso nos convencermos e convencermos também a sociedade e governos de que nem toda receita tem eficácia na cura de uma doença que é crônica – no caso da educação escolar, a doença da pobreza cultural e da ignorância. Infelizmente, não depende só de nós, os professores, ainda que fôssemos plenos de inteligências, que todo mundo chegue a ser um senhor Julio César. O imperador fracassou.
*Nome dado ao vencedor do concurso realizado na escola da história do filme.

Comentários

Anônimo disse…
Professor Bettto, gostei da análise do filme. Eu acrescentaria que precisávamos perder este conceito de educação como resultado, e desenvolver um outro mais real e possível: como um caminho. Educador e aprendiz caminham juntos e o que acontece nesta caminhada é o que é educação e não onde eles vão chegar. Tebho várias lembranças de alunos que não aprenderam os diversos conteúdos que ministrei enquanto professora e jamais por isso os considerei fracassados, penso que eles têm um caminho diferente: de repente até, muito mais iluminado e prazeroso do que o que pretenciosamente, pretendíamos para ele.
Quanto a sua referência à " receita da aprovação automática, a pretexto de evitar a repetência e o desestímulo", penso que precisa reciclar seu conceito sobre o tema recuperação continuada. Quem inventou "aprovação automática" foram os professores, pois o termo dispensa trabalho e preocupação com o aluno. Você sabia que nos países desenvolvidos não existe repetência? A conduta é tão obsoleta que só existe mesmo em países onde não há compromisso com o futuro das gerações. Eu fico impressionada com o grau de sadismo dos professores por defender tanto a repetência. E também o grau de ignorância e falta de autocrítica ao não se dar conta de que repetência do aluno é atestado de incompetência da escola e dos seus professores junto com toda a equipe envolvida.

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