Questão de ponto de vista

Primeiro, foi um livro de história que trazia um capítulo sobre a Revolução cubana. Depois foi o livro de Monteiro Lobato, As caçadas de Pedrinho. Teve ainda a revista Brasil sem Homofobia, chamada de “kit gay”. Mais recentemente o problema foi o livro Viver e aprender, por uma vida melhor

Disseram que ele ensina o menino a falar errado. Fui ler o livro. Descobri que o problema estava no capítulo que trata da variedade popular da Língua (traço comum de todas as Línguas vivas do mundo).

O capítulo não ensina a falar “errado”, mas a pensar a Língua como algo vivo e dinâmico, como algo que varia sem perder a sua essência que é a comunicação entre os falantes de uma língua, como e por que nos fazemos entender com ela. Todos os dias muitos meninos e meninas se perguntam por que se deve falar “assim ou assado” para querer dizer determinada “coisa”. 

A escola não pode, não deve, privar o aluno desta curiosidade. Seria uma espécie de imposição normativa, "ditadura da linguagem" como preferem alguns críticos do ensino da norma apenas. Mais ou menos assim: “você deve falar/escrever assim porque é assim que se escreve e pronto”. E, aí, cadê a liberdade de pensar, de questionar, de inferir? 

Como professor, eu sempre procurei instituir em minhas aulas de Português um pouco das teorias linguísticas que aprendi, em especial as abordagens sobre a Linguagem verbal. E olha que eu sempre tive sucesso junto àqueles jovens alunos que têm vontade de discutir as “coisas” do mundo. Aprenderam comigo (em sentido recíproco) que o modo de falar que se usa no dia a dia serve à comunicação, mas que o modo de falar chamado padrão, o determinado pela gramática normativa, que eu os fiz conhecer na escola (porque é na escola que se estuda isso, em qualquer país do mundo) também serve, e muito.  E eles aprenderam direitinho. E com uma vantagem: se tornaram mais conhecedores da sua própria língua e menos preconceituosos com eles mesmos e com os outros. 

Nos primeiros dias de aula, é comum um professor de português, em diferentes regiões do país, ouvir de muitos alunos e alunas a seguinte frase: “Eu não sei falar português”. No final, um bom professor de linguagem vai ouvi-los dizerem:”Eu não sabia falar a norma padrão, que não é a única forma de usar a língua, mas agora sei também”. E nem por isso eles sairão a escrever o uso popular da língua em redações formais, como exames e concursos. 

A proposta é pedagogicamente apropriada (pena que é só um capítulo), e só quem não conhece o valioso estudo linguístico ao longo dos anos é que se precipita em dizer bobagens pré-conceituosas. O futebol profissional tem suas regras, mas isso não impede de no dia a dia ser jogado com a mesmo emoção e a mesma importância por um grupo de amigos na rua, na praia, na várzea. Agora, se uma pessoa quiser jogá-lo profissionalmente, ela terá que conhecer as normas do jogo, oficialmente falando, e praticá-las, em que pese o fato de que algumas regras do jogo sejam muito chatas, deixa-o muito aborrecedor: não poder fazer firulas com a bola, não poder tirar a camisa ao comemorar um gol, não poder dar uma paradinha ao cobrar um pênalti. No futebol profissional não há mais poesia. Assim é a língua. Sem o modo popular (que é mais natural), por exemplo, não haveria a poesia falada e cantada. 

Quem estaria errado hoje com relação ao uso do verbo "ter" com valor de "haver"  em situações como esta: “Tem pessoas que…”, “Tem uma coisa que…”, “Tem duas TVs lá em casa”. O verbo "ter", conforme a regra padrão, não pode ser usado com valor de "haver" em casos como estes. No entanto, a maioria absoluta dos brasileiros, seja letrados ou não letrados, escolarizados ou não escolarizados, alfabetizados ou não alfabetizados, usam-no assim. Quem está errado? A norma que se estabeleceu ou os usuários da língua? Quando um dia deixaremos de ser pre-conceituosos em termos de linguagem? 

O livro é muito atual e eu o usaria em sala caso ainda estivesse ensinando. Ele segue um princípio democrático e responsável com vistas ao ensino do português brasileiro. Agora, como qualquer outra ferramenta de ensino precisa de alguém que saiba usá-lo; senão não terá efeito positivo, assim como acontece com qualquer outra ferramenta feita para serem usadas com boas intenções. Exemplo: a faca foi criada para facilitar a nossa vida, mas foi e é usada por muitos para ferir também. Difícil não lembra a bomba atômica jogada sobre Nagazaki e Hiroshima.

Quando eu era criança, me fizeram acreditar que o mundo só ia até onde os meus olhos viam. Um pouquinho depois, caminhando, descobri que o caminho tinha curvas, bifurcações, cruzamentos. E que estes me levavam a outros caminhos, outros lugares. Em verdade aprendi que tudo era uma questão de ponto de vista.

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