Quando tudo começou

Sem ser de costume, um dia vi minha mãe arrumando meu irmão mais velho com roupa de sair. Depois, pegou um caderninho, uma cartilha do ABC, um lápis com borracha e uma régua e botou tudo numa pequena mochila tiracolo que ela mesma fizera. Depois disse com carinho e orgulho, colocando a mochila no ombro dele:
- Agora você vai estudar.
Eu não sabia o que era estudar. E duvido que meu irmão também soubesse, mesmo sendo mais velho, porque ele não parecia muito entusiasmado com a novidade. Mas foi assim mesmo. E eu corri para ver a partida da porta.
Mas ele não andou tanto assim para chegar à escola – Isso mesmo, escola, porque era numa escola que se estudava, era o que a mãe dizia sempre.  Para minha surpresa, a tal escola ficava quase do outro lado da rua, no sítio onde morava a comadre da minha mãe. Surpreso porque minha mãe também sempre dizia que a escola mais perto de casa ficava bem longe. Num bairro de gente rica.
A comadre da minha mãe era uma jovem chamada Maria que havia terminado o científico lá no Liceu Paraibano e se tornado professora. O patrão do pai, o dono do sítio, foi quem ajudou nos estudos da moça, também permitindo que ela forjasse uma escola no quintal da casa onde morava. Depois que a minha mãe nos contou a história da comadre Maria, estudar tornou-se em mim o maior dos meus interesses. 
Noutro dia, não aguentei de tanta curiosidade e perguntei a minha mãe, enquanto ela arrumava meu irmão, de novo, cheia de carinho e orgulho:
- Mãe, o que é estudar?
Ela ficou olhando assim com os olhos que pareciam não ver nada, como se buscasse as palavras certas para me responder, o que me fez pensar que também não soubesse. E só depois de um tempo disse:
- É aprender ler e escrever.
Não acreditei muito no conceito de estudar que a minha mãe disse. Se fosse só por isso ela não arrumaria o meu irmão com tanto zelo e atenção todos os dias. Também porque ela disse assim meio que pra encurtar a conversa, sabe?, pois tinha ainda de apanhar as roupas da patroa que botara para quarar no quintal de casa.  
Acho que ela não queria era me dizer, mas estudar devia ser bem mais que ler e escrever: talvez fosse como saborear as frutas lá do sítio onde ficava a escola da professora Maria. Lá tinha um montão assim de árvores cheiinhas de frutas. Dava para ver lá de casa. Cajus, mangas, jambos, abacates, goiabas, araçás, fruta-pão, e tantas outras. Que criança não gostava disso! Sem contar os passarinhos, que eram muitos, e cujos cantos me traziam um tantão assim de felicidade. Acho que minha mãe queria é que eu descobrisse sozinho.
Daí, por minha conta, eu comecei achar que devia ser bem legal ouvir os passarinhos cantando de perto enquanto estivesse lá na escola da professora Maria. Porque era assim que eu ouvia das crianças que iam para lá todos os dias, incluindo o meu irmão mais velho: uma alegria desse tamanhão. Parecia que os pássaros cantavam em suas mãos.
Mas pense num homem bruto e trabalhador que era meu pai! Eu não sei o que fizeram com ele quando era criança, mas ele parecia que não gostava de ver a gente feliz. Era só eu dizer que estudar devia ser bem bom, ele logo cortava o meu barato de criança, dizendo:
- Filho meu tem é de trabalhar.
Eu também não sabia o que era trabalhar. Mas de tanto ele repetir isso eu comecei a desconfiar que não fosse tão bom quanto estudar. Agora, como eu ia ter um pai que achava que só porque eu era uma criança pobre não pudesse ouvir os pássaros nem comer das frutas do sítio onde ficava a escola da professora Maria?
- Estudar o quê! Isso é coisa de gente rica.
Era assim. Não fosse a mãe a gente tinha só de trabalhar para viver! Talvez por isso a gente quase não visse o pai em casa. Ele passava o dia todo pavimentando ruas e construindo casas da gente que a gente achava que era rica. À noite, ficava ainda um tempão na venda que tinha na frente de casa para não vender quase nada.  Só para não parar de trabalhar.
Eu não queria viver tanto assim como meu pai, não. Quem sabe, quando adulto como o meu pai, eu tivesse que viver como ele, a gente nunca sabe, mas naquele momento da vida eu queria era estudar na escola da professora Maria. Eu às vezes chegava a ficar triste pela vida que o pai levava.
Daí, logo minha mãe vinha e me dizia que a vida havia sido muito dura com ele e suas doces palavras me enchiam de sossego. Acho que ela conhecia bem os meus sentimentos.
- Calma, tudo em seu tempo.
É que famílias como a nossa, dizia minha mãe, só podiam mandar os filhos para a escola quando eles completassem sete anos. E eu só tinha seis. O Governo não tinha como dar escola pra todo mundo porque não tinha tantos professores no país. Então, tive de me contentar com o ouvir do cantar dos pássaros e o balançar das frutas de longe, lá da porta de casa, até que os sete anos chegassem.  
Acho que é porque eu era uma criança, mas um ano pareceu uma eternidade. 
Até que enfim, também num dia,  ouvi da minha mãe, com o mesmo zelo, carinho e orgulho que fizera com meu irmão mais velho:
- Chegou sua vez, meu filho.
E sob a sombra dos cajueiros, das mangueiras, dos abacateiros, das goiabeiras, dos jambeiros, dos araçazeiros, das frutas-pão e tantos outros, tomei contato com as primeiras letras as quais eu não sabia.  E foi ali, na escola forjada pela professora Maria, a jovem comadre da minha mãe, que tudo começou.
E quando eu digo “tudo”, me refiro apenas àquilo que me tornei vinte e um anos depois: um professor de português. Como professor, descobri que estudar não é apenas aprender a ler e escrever como dizia a minha mãe nem tão pouco saborear o sabor das frutas e o canto dos pássaros do sítio da professora Maria como eu pensava.
Aprendi que o ato de estudar, para relembrar Paulo Freire, é um ato de vontade crítica perante as coisas do mundo. É assumir-se como agente que pensa a sua própria existência. É querer dialogar com tudo aquilo que a gente ainda não sabe. É ter curiosidade pelo desconhecido. É descobrir e descobrir-se. Em resumo, aprendi que estudar nos leva a aprender a ser e, como resultado deste aprendizado, a ensinar o outro a também ser.
Ah, é preciso dizer ainda que nos dias de chuva não tinha escola no sítio onde morava a professora Maria. Mas os pássaros nunca paravam de cantar. Chuva ou sol, eles lá estavam a me encantar em sinfonia. Talvez porque soubessem que a chuva não demorasse mais que três dias e que aquilo de estudar ia me fazer um sujeito bem menos infeliz dali a alguns anos.  



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