Gramática e atuação



Era um terceiro ano do Ensino Médio. Sala lotada. Iniciei a aula abordando, como previsto, o ensino da Gramática. No dia anterior, tinha sido alvo de críticas ao meu método de abordagem em uma reunião pedagógica da qual havia participado. Me apoiei em Celso Luft, um dos renomados gramáticos brasileiros contemporâneos. Em sua Moderna Gramática Brasileira, ele afirma:

- “Enquanto esquema natural da vida humana e código de linguagem verbal específico do ser humano, a Língua existe na cabeça de cada um de nós”.

Pode parecer estranho, mas falar de Gramática em sala de aula para jovens alunos sempre foi algo muito arriscado para os professores de português. Realmente não é fácil lidar com a questão. Talvez porque esta tenha sido apresentada sistematicamente a eles, professores e alunos, ao longo dos anos como um conjunto de normas (regras) padrão e único. O conservadorismo pedagógico no ensino de Gramática age como inseto na plantação: destrói toda e qualquer avanço científico. E qualquer tentativa de redizer conceitos e fundamentos da norma padrão é, para muitos, pôr em risco a própria Língua.

Exageros à parte, a Gramática, como qualquer matéria de estudo, não pode ser abordada sem fundamento teórico, como saber nato do professor. Este nunca deve chamar a responsabilidade do que é dito nos livros didáticos para si (a não ser que seja ele o autor do livro). É preciso se preservar disso antes de tudo e dialogar com especialistas, estudiosos no assunto (citar a fonte). Não para se fazer arrogante (isso nunca), mas para compartilhar com o aluno seu constante aprendizado com outros.

Acreditando sempre esse método, de dialogar com especialistas, ao citar Luft, percebi umas carinhas de espanto da turma. Talvez não lhes fosse comum  esse diálogo. Mas era um espanto curioso, do tipo: quero ouvir mais sobre isso. O que me deu muita vontade de arriscar mais. E eu, é claro, me arrisquei. Quem não arrisca não petisca, diz o datado. O que poderia acontecer que eu já não esperasse: agrado ou repulsão.

- Em qualquer lugar do mundo, todo homem faz uso de um determinado código linguístico, isto é, de uma Língua, para se comunicar, ainda que não saiba de fato como isso se processa dentro de si, no seu cérebro.

De repente, bem na minha frente, um daqueles alunos de costumeira baixa adesão às aulas, levantou a mão.

- Fessor, o português do Brasil é diferente do de Portugal?

Ufa! Que alívio! Esperava, juro, um “hiii, lá vem esse negócio chato de gramatica de novo”. O alívio foi tanto que me senti livre para opinar sobre a questão (é claro que minha opinião já não era tão original. Alguém também já a havia anunciado antes):

- Eu diria que, no caso dos brasileiros, essa língua bem que poderia se chamar Língua Brasileira dada as diferenças do uso que, mesmo na escrita, ocorreram ao longo de décadas em relação ao português de Portugal. Mas essa já é outra discussão, certo?

E o espanto deu lugar a algo como: quero saber mais sobre isso. E as mãozinhas foram sendo erguidas. Vale destacar: parecendo despertar da sonolência que a acompanhava desde casa – é bom lembrar que a aula era matutina -, uma aluna interveio lá do fundo:

- Professor, mas se a Língua é algo natural, por que existem as regras?

Faço uma pausa aqui para melhor refletirmos sobre o que disse Rubem Alves em seu livro A alegria de ensinar. Coisa que nunca aceitei facilmente é a diferença que ele estabelece entre professor e educador em suas crônicas: professor, é profissão; educador é vocação. “Educadores são pastores da alegria”, disse. Sendo assim, devemos concluir que todo aquele que se diz professor não tem alegria para ensinar.

Aqui para nós, pastores ou não, tem como não ficar com o coração transbordando de alegria, embora muitas vezes por força da ocasião não demostre, com intervenções com esta da aluna lá do fundo? Não tem, né? Sabe por quê? Porque acho que aqueles que se consideram professores também necessitam de motivação que venha de fora. Não só de dentro dele, mas também de dentro do outro, o aluno. Por isso, me senti invadido por um entusiasmo e uma alegria poucas vezes sentidos em sala. Não precisou a menina me dizer elogios, me jurar amor e admiração. O que importou naquele momento, e em vários outros, foi que ela questionou com sensibilidade e coerência sobre o assunto. E por me sentir assim, transbordando de alegria, lapidei as palavras para que minha elucidação soasse como poesia ao desejo da aluna e dos outros: por que as regras existem.

- Embora seja algo natural, como muitas outras coisas na vida humana, a língua também sofre interferências de vários outros fatores, não tão naturais assim. Essas interferências (que podem ser de ordem política, cultural ou geográfica) acabam, de alguma maneira, se sobrepondo ao esquema natural da língua, exigindo, até como forma de preservá-la, certas normas para seu uso.

Senti que minha lapidação tinha provocado na sala um repentino interesse em querer me questionar mais sobre essa coisa de ensino de Gramática. E fui em frente, me arriscando ainda mais, como se um verdadeiro poeta no trato com as palavras. E tomei novamente emprestado as palavras de Luft:

- Como todos os falantes/usuários, em especial os jovens alunos, estão inseridos no mesmo contexto de sua língua (contexto linguístico), é importante que estes tomem conhecimento dessas normas (ou parâmetros socialmente estabelecidos) a fim de saber atuar linguisticamente usando a própria língua. Não apenas saber a língua, como algo natural apenas.

Daí, um outro aluno, da turma dos mais concentrados e críticos, quis saber, de forma quase peremptória:

- Professor, então por que a gente tem de estudar português se a gente fala português?

Sabe quando você se realiza? Foi assim que me senti naquele momento. Porque senti a feliz necessidade de me apoiar em outro grande craque no assunto: Noam Chomsky, cuja biografia compartilhei rapidamente com a classe (estou certo de que muitos se lembrarão do mestre da teoria da Gramática Gerativa e Transformacional para sempre. Quem disse que ensinar gramática também não é cultura, não é história?). Chomsky defende que a aprendizagem da língua não é uma questão de hábito e condicionamento, mas um processo criativo, uma atividade cognitiva e racionalista, e não uma resposta a estímulos externos.*

- Saber a língua e saber atuar linguisticamente têm a ver com o que ele chama de competência (o saber, conhecer) e performance ou habilidade (o saber atuar, lidar com a Língua).

Ao fazer assim, o que ocorreu dali a diante, em todo o curso, foi um completo envolvimento para saber mais sobre a Língua materna (no caso, o Português falado no Brasil) e suas várias formas e usos (as variedades linguísticas).  Senti que tinha valido a pena ter assumido o risco. Mas para assumir riscos é preciso ter coragem de sair do comum. É preciso não ter receio de dar ao objeto uma abordagem diferente e questionadora, que não tranque o debate e que permita o diálogo com os outros, inclusive com os alunos, estimulando a liberdade de refletir sobre algo, sobre tudo.

Com ensino de Gramática é a mesma coisa: como componente curricular do ensino formal (aquilo que é de responsabilidade da escola), se bem fundamentada, com uma abordagem inserida no contexto linguístico e literário, o estudo da gramática da Língua (e isso, creio, deve ser igual para qualquer Língua) pode contribuir, e muito, no sentido de tornar o jovem aluno um ser linguístico mais atuante, tanto como leitor/ouvinte quanto escritor/falante.

Em especial no mundo globalizado de hoje, como o conhecimento (invenções, descobertas, estudos, etc.) se manifesta (se materializa) por meio da língua verbal (oral ou escrita), saber atuar linguisticamente (ou seja, ter habilidade no uso da língua) é requisito imprescindível na formação intelectual e cultural do homem (ser) moderno. E essa formação passa por conhecer bem a Gramática da Língua. Um antídoto contra o inseto conservador do saber linguístico.

*Do livro Aspect of theTheory of Syntax (1965).



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