Gramática reprovada



Depois de um bom tempo fora do ambiente escolar, resolvi me arriscar em um processo seletivo de uma escola de ensino técnico. A prova era uma aula teste. Dias antes, conforme prescrito no edital, recebi por e-mail os três temas propostos (classes de palavra, orações subordinadas e revisão gramatical). Um seria escolhido por sorteio.

O problema começou já aí. Digo problema porque sou um questionador incorrigível. Mas não é assim que tem de ser? Paulo Freire já dizia: ensinar exige questionamentos. Gosto de questionar e de ser questionado. A vida sem questionamentos não vale a pena. Um professor que ensina certo é aquele que tem no questionamento seu norte pedagógico. É aquele que exerce reflexão sobre sua prática. Isso é de Freire também. Gosto de ser crítico comigo mesmo e com as coisas. Está em mim, que posso fazer.E o problema era o terceiro tema. 
Ora, se a gramatica já é um aspecto da Língua, como afirmam os linguistas, oração subordinada e classes de palavras são aspectos da gramática normativa. Então, estes dois aspectos já estariam incluídos no último tema revisão. Ou não? Se não, que tipo de coisas caberia numa revisão gramatical? Como proceder na abordagem do tema durante a aula teste no caso de ser este o sorteado?
Não deu outra. Quando, enfim, um dos membros da banca retirou de dentro de um saquinho colorido um papelote e anunciou...

- Revisão gramatical.

Eu entendi aquilo como um desafio. Os desafios também fazem parte do norte pedagógico do professor. Uma oportunidade para fazer o certo: no meu caso, como professor de português, ao invés de falar de regras gramaticais, falar de conceitos de gramática. Era disso que falava as novas pesquisas sobre a Língua com as quais eu vinha lidando nos últimos dez anos. Então por que não trazer novas abordagens para dentro da escola? Por que falar dessa coisa tão repetitiva e enfadonha de regras? A gramática não é  Língua.

Como escola de ensino técnico, num bairro de classe média, apostei que eles quisessem novidades. Não iam querer ouvir de mim, durante vinte minutos (uma eternidade,) um revisão sobre regras do bom uso da Língua? (Até porque outros concorrentes a vaga talvez já o tivessem feito). Lá as expectativas eram outras. Porque lá os alunos iam exigir mais do professor. Iam querer estar por dentro dos novos conceitos sobre os vários aspectos da Língua, incluindo os de gramática, e não apenas conceitos como sujeito e predicado, verbos irregulares, concordâncias e colocação pronominal, etc.

É, não tem jeito. A indisciplina está na minha natureza. Na minha natureza de professor também. Está em mim, que posso fazer. Além do que eu já havia me arriscado por mais de dez anos em sala de aula e não fora tão ruim assim. Vou exigir mais de mim, pensei. Quem sabe não é isso que eles querem de mim também.

Dos meus três examinadores, a mulher (os outros dois eram homens) era quem mais me fazia pensar assim. Ela tinha um olhar que parecia não estar olhando pra nenhum lugar da sala.

- Quando estiver pronto, pode começar, ela disse.

Comecei. E comecei citando ninguém mais ninguém menos que Sírio Possenti, um dos mais conceituados professores e linguistas brasileiro. Embora defina gramática como um “conjunto de regras”, ele diz: “Por ser considerado um dos vários aspectos da Língua, a noção de gramática é controvertida e nem todos que se dedicam a ela a definem da mesma maneira. Em outras palavras: o que Possenti diz é que existem vários tipos de gramática de uma mesma língua. O que significa dizer que não é fácil definir o conceito de gramática (imagine elaborar um revisão gramatical em vinte minutos).

Continuei. Além da gramática normativa, aquela que ainda predomina nas escolas, que define o conjunto de regras que devem ser seguidas de forma correta, em qualquer situação de fala e escrita, ignorando as variações que, inevitavelmente, existem na Língua, tem-se também a descritiva: conjunto de regras que são verdadeiramente seguidas, ou seja, como a língua é falada de fato, o ponto chave da diferenciação em relação à normativa. A gerativa transformacional que retrata o conhecimento mentalizado que os falantes possuem da língua, uma competência linguística universal e particular (a capacidade que o falante tem de a partir de um número finito de regras, produzir um número infinito de frases). A funcional que verifica o modo como a língua está sendo usada em seu dia-a-dia - ou seja, se aceita aqui o fato de que a língua é dinâmica e está sujeita a variações (o importante é a interação verbal). E a internalizada: o conjunto de regras que o falante domina naturalmente - para os que defendem este tipo de gramática, o falante possuiu conhecimento gramatical suficiente para se comunicar, mesmo sem ter frequentado a escola. É o caso dos chamados analfabetos.

Faço aqui um parêntese para dizer o seguinte: acho muito injusto que o chamem as pessoas que não frequentaram escola de analfabetas. Ora, se se comunicam e comunicam, é porque sabem muito da gramática da Língua, seja ela qual for.

Claro que eu procurava ilustrar minha abordagem didática com rápidas pinceladas argumentativas. (em forma de exemplos). Como esta a despeito da gramática funcional, que fez os olhos dos meus avaliadores quase saltarem da caixa (mas tinham de parecer isentos): se o aluno cometer equívoco ao escrever casa com “z” é só dizer para ele que esta palavra se escreve com “s”. Porque esta é a regra que ainda prevalece na educação formal (a normativa). Nela, a letra “s” entre duas vogais representa o fonema [z] também. Pronto. Disse muitos exemplos assim em sala de aula. A maioria dos alunos achava o maior barato.

Preocupado com tempo, dei início o que seria as conclusões finais da aula - a troca de olhares incomodados dos avaliadores me deu a dica: seja qual for a gramática utilizada, seu conjunto de regras (grafia das palavras, sílaba tônica, concordâncias, regências, colocação pronominal, etc) não devem ser os únicos aspectos a serem levados em conta num exercício de revisão gramatical. Há outros aspectos que também devem ser verificados quando se visa à produção de um bom texto (ou discurso), já que fazem parte da estrutura da língua: forma ou estrutura (gênero e tipo); variações linguísticas (regionais, época, faixa etária, área do conhecimento); estilo e intenção do autor; temática e assunto abordado; coesão (articulação nível textual) e coerência (lógica); contexto textual e situacional; vícios de linguagem e semântica (significado, sentido).

Mas sabe aquele sentimento de que nada do que você fala se aproveita? Os meus três avaliadores pareciam não me enxergar ali (a não ser durante os exemplos). Nada perguntavam. Talvez para que eu não fosse prejudicado no tempo (pensei, para o meu próprio alívio). Um dos homens até chegou esboçar de vez enquanto um sorriso. Não sabia se de aprovação ou não à minha exposição. Mas era mulher e seu olhar indescritível quem mais me causava o sentimento de distância. Foi ela quem também que se encarregou de anunciar (como eu previ) o fim do tempo. Para depois de uma rápida conferência, perguntar:

- Professor, que corrente pedagógica o senhor acha que tem mais a ver com sua abordagem? 


Para simplificar: do ponto de vista didático-pedagógico, eu respondi "todas". Do ponto de vista do ensino da Língua, eu disse "a linguística".

O Resultado saiu publicado semanas depois conforme prometido. Bom, não é difícil imaginar o que aconteceu comigo, né? Não deu outra. Dos treze participantes que compareceram à aula teste (outros desistiram) fui o último na avaliação da banca. E com grande margem de distância na pontuação em relação ao primeiro colocado. Vai ver que é porque minha resposta ao único questionamento feito não tinha nada a ver com o que eles queriam. É o que eu acho. Assim eu posso continuar questionando e me questionando mais. 

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