Uma coisa do demônio (?)

Certa vez, numa aula sobre acentuação gráfica, tive a infeliz sorte (ou não) de escrever na lousa a palavra candomblé como exemplo de oxítona terminada em “e”. Bem não terminei a escrita, que o fiz de forma didática, dividindo-a em sílabas (can-dom-blé), uma inesperada comoção se sucedeu em sala.

A maior parte dos alunos estava visivelmente horrorizada. Pancadinhas com as costas da mão fechada nas carteiras; beijos a crucifixos; e sinal da cruz repetidas vezes. Por um momento pensei que algo de muito grave teria acontecido. Mas logo me dei conta da razão da ingênua insubordinação: a palavra candomblé.

“Credo, professor, isso é coisa do demônio!”. Quase uníssono.

A palavra candomblé é a forma aportuguesada de kandombele de origem africana que significa pequena casa de iniciação de negros (ka=diminutivo; nzo=casa; ndombe=negro; mbele=criado/nascido) ou casa de dança dos negros. No Brasil de hoje também designa religião de matriz africana e/ou o próprio culto desta religião.

Particularmente, eu gosto da palavra por ser uma trissílaba, ainda que não estivesse pensado nela durante a busca por exemplos. Didaticamente, sempre gostei das trissílabas e polissílabas porque elas permitem melhor demonstrar a posição da sílaba tônica e sua classificação: última (oxítona), penúltima (paroxítona) e antepenúltima (proparoxítona) a partir da direita. Além de ser, no caso de candomblé, sonoramente perfeita. Quase um poema inteiro.

Mas, naquele momento, a palavra escrita na lousa virou coisa do diabo. Diabo, do latim diabulus (espírito do mal e caluniador) e demônio, do grego daimon (gênio da destruição) hoje em dia são quase sinônimos para designar aquilo que causa temor nas pessoas. Talvez fosse esse o exato sentimento dos alunos em relação à palavra candomblé. Tão somente uma palavra como tantas outras. Para mim era incompreensível a tamanha rejeição que sofria, ainda mais de alunos/estudantes, numa módica aula sobre acentuação gráfica.

Aí pensei: devo me abster de interferir, fingir-se não incomodado e continuar com a gramática da sílaba tônica ou questionar a ingênua insubordinação. Aprendi e gostei de ter aprendido, que um professor nunca deve se isentar de expor seu incômodo, sua opinião, sua ideologia. Um professor não pode se acovardar em seus princípios sob o risco de perdê-los para o senso comum. O senso comum deve servir à escola apenas como ponto de partida. É preciso intervir e entrevir em assuntos que lhe dizem respeito como professor. E a ingênua insubordinação dos alunos me dizia respeito sim.  Não somente como professor, mas também como pessoa humana e humanizadora. Dialogar com alunos nesse sentido não é impor princípios desta ou daquela ideologia. É antes impor-se ao estado letárgico que assustadoramente predomina hoje no espaço escolar. 

Então pedi licença a turma e iniciei a conversa. Fiz um breve resumo histórico, recorri à etimologia, sugeri contato com a Filosofia e a Sociologia e falei do belo Mundo de Sofia.

Não tive sucesso. Como eu previ, fui acusado de mal gosto, de caráter ideológico duvidoso e de aliciador da “obediência cativa”. Na verdade, eu apenas quis ensinar o certo*: permitir o direito ao contato com a diversidade. Em nenhum momento defendi nem defendo (muito menos ofendo) esta ou aquela religião. Mas, diante da ingênua intolerância dos alunos de que a palavra na lousa remetia a publicidade intencional da religião africana, chamei a atenção para o fato de que as crenças e seus cultos deveriam ser igualmente respeitados. 

Não deu certo. A maioria estava decididamente a não levar em conta o meu ensinar certo. Estava nem aí para o fato de eu não ter religião, conforme eu disse. O jeito foi mudar o exemplo da oxítona terminada em “e”. Escrevi acarajé, uma quadrissílaba. Ninguém se insurgiu. Mas o tema da acentuação gráfica, ao menos, parece ter surtido efeito.

Depois da aula, fui interrompido a caminho da sala dos professores por um dos poucos alunos negros da sala. Querendo parecer discreto, mas com um sorriso sincero, disse que queria me agradecer pela excelente explicação sobre sílaba tônica. Ninguém nunca tinha explicado de forma tão 'fácil de entender', disse. Em seguida, parecendo ainda mais discreto e sincero, me revelou em segredo: “Minha família é adepta do candomblé. Lá em casa somos todos candomblecistas”. 

_____________________________________
*Ver Freire e sua Pedagogia da Autonomia



Comentários

Mais lidas no blog

CRASE: um fenômeno lingüístico

Acentuação gráfica, para quê?

Sobre trabalho, dar aulas e resignação

A ferradura, o casco e os sapatos

Um carneiro e os outros