Educação, indisciplina e existência

Comecei a me dar conta da minha real existência no mundo por volta dos dez anos. É desse tempo que trago muitas lembranças da vida. Inclusive a lembrança de quando eu fui acusado de indisciplina pela terceira vez.

A palavra indisciplina deriva, como se sabe, de disciplina que, talvez nem todos saibam, deriva de discípulo, do latim discípulus, que significa aquele (ou aqueles) que se apropria de algo a ser aprendido e seguido. Logo, o sujeito indisciplinado é aquele que não aprende ou não se apropria, por apreço ou por falta deste, de tudo aquilo que não lhe agrada.

Eu não tinha tanta noção assim do que era ser indisciplinado. Mas eu deduzia já por aqueles tempos que talvez não fosse errado ser. É que eu comecei a associar o termo as minhas recusas em fazer alguma coisa que eu não gostava de fazer ou que não queria.

Se eu já tivesse lido Camus naquela época (o que era impossível) eu talvez tivesse sabido que indisciplina tem a ver também com rebeldia. Eu não sabia ainda o que era ser rebelde. Na verdade, minha consciência ingênua* não me permitia saber disso. Eu dizia NÃO para tudo que me desagradasse e de qualquer jeito. Bastava não querer. Eu não sabia dizer NÃO.

Mas sabe de uma coisa? Acho que ainda não sei, pois continuo sendo acusado de indisciplinado até os dias de hoje. A última vez eu já tinha prá lá de quarenta, quando fui impedido de fazer o que mais gostava de fazer: ser professor. Depois de dez anos, disseram que eu não servia mais para o cargo. Eu havia me tornado um professor indisciplinado por falar muito de política e de liberdade em sala de aula.

A primeira vez foi aos sete anos. Quem me acusou foi o padre da paróquia que minha mãe frequentava aos domingos. E foi dentro da igreja mesmo. Minha mãe sempre me levava à missa aos domingos. Eu não gostava de ir à igreja aos domingos nem em dia nenhum. Eu achava que era por que tinha medo de padres. Mas não era só por isso, não. Claro, as vestes deles me davam certa fobia, mas eu achava igreja chata também.

Mas minha mãe queria que eu prestasse bem atenção no que o padre dizia. Para eu ser gente. Eu dizia que era gente, só não gostava de estar ali. Eu chorava, esperneava, chorava alto mesmo para querer está bem longe dali. Sei lá, brincando de fazer casinhas com pedaços de tijolos e asfalto de carvão moído. No final de uma das missas, aparentando envergonhada de mim, minha mãe foi pedir perdão ao padre. “Vê-se que seu filho é uma criança indisciplinada, filha, vai dar trabalho”, disse o padre apertando mina bochecha.

Quem me acusou pela segunda vez foi um velho militar aposentado. Isso mesmo. Tinha eu de oito pra nove. Meu pai tinha uma pequena venda em frente de casa. Na verdade, uma vendinha, mas tinha um pouco de muita coisa. O velho militar aposentado era um dos fornecedores. Andava num jeep velho assim como ele com um negro de aspecto angustiado de motorista.

Eu tinha medo daquela figura esguia e curvada, de rosto cadavérico, que batia continência e exigia que meu pai, que não era militar, também o fizesse. Seus olhos também eram amedrontadores. Olhava para gente como quem olhasse um inimigo. O jeep verde-broto desbotado, mesma cor da roupa que o velho vestia, também me dava medo. Parecia aqueles carros de Guerra que eu via em fotografias dos jornais que o pai usava para enrolar as mercadorias na venda.  Parecia trazer o mundo todo de uma vez, de tão penso que era. Toda vez que eu ouvia o ronco engasgado do motor se aproximando eu corria para se esconder lá no fundo do quintal onde passava o medo brincando.

Um dia não deu tempo de correr. E o velho olhou para mim com censura. Parecia ter prazer em me dar medo. Como sempre fazia, exigiu que eu ajudasse o motorista de aspecto angustiado a descarregar o jeep. Eu disse que não ia. Chorei, chorei alto mesmo, esperneei, mas não fui. Meu pai, que não sabia onde escondia a vergonha, pediu desculpas ao velho por minha causa. “Sabe de uma coisa, Manoel, esse teu filho aí é um indisciplinado, não vai dar pra nada”, disse com a cara cheia de hostilidade.

A terceira vez.

Eu já estava satisfatoriamente alfabetizado (foi o que disse a professora à minha mãe) e tive de ir para um grupo escolar que ficava distante do bairro onde morava. Para mim era mais que distante ainda. Era noutro mundo. Tudo era diferente e adverso, embora a cidade fosse a mesma. Sofri todo tipo de insegurança pelo que estava por vir. Na primeira semana de aula eu nem fui. Entrei em pânico, fiquei doente.

Depois de um tempo, ainda não totalmente adaptado ao novo mundo escolar, ouvi dizer que o presidente do Brasil vinha em visita à cidade. Sua comitiva ia passar bem em frente do prédio. Ouvi dizer que era uma visita importante para a cidade. Motivo de orgulho para os pessoenses que gostassem do seu país. Verdadeiros patriotas.

A professora disse sorrindo que era para gente, os alunos, prepararem uma bela homenagem ao presidente. A gente ensaiou muitas vezes como ia fazer para homenagear o presidente. Não podíamos faltar com respeito a ele. Todos deviam ficar de pé acenando a bandeirinha do Brasil durante a passagem da comitiva. E não se podia esquecer do ponto máximo da homenagem, dizia a professora: bater continência no exato momento em que o carro que levava o presidente passasse em frente do prédio escolar.

Não sei por que, mas eu não gostei nadinha de ter de homenagear um presidente, que eu nem sabia quem era. Ainda mais de bater continência. Eu gostava era de quando a professora pedia para a turma ler estórias e poesias, de fazer desenhos, da hora da merenda e do recreio. Não gostava de aplaudir o presidente. Fiz birra. Esperneei. Chorei. Chorei alto mesmo. Mas, ao contrário de mim, os outros queriam ver o presidente, e se queixaram do meu não querer.

Fui levado pela professora pelo braço de volta para dentro do prédio escolar. Enquanto me puxava, ela dizia que estava envergonhada de mim. Disse que depois ia conversar melhor comigo e com minha mãe. Porque naquele momento tinha de voltar para homenagear o presidente. Aquilo evidentemente era muito mais importante do que eu e dos meus quereres. “Menino mais indisciplinado”, disse, batendo a porta da sala onde me deixou submisso. 

Não sei se é coincidência, ou não, o fato de hoje eu ter tanta rejeição a formigas. A professora tinha formiga no nome. Não-sei-o-quê Formiga. Não tem como esquecer.

*Ler mais sobre consciência ingênua em Freire (Pedagogia da autonomia)



Comentários

Anônimo disse…
Como professora amei.
Quando estou em sala de aula, nao sou do tipo "certinha": deixar o os alunos o tempo todo sentados em fileiras, certinhos, ou de dar textos prontos p copiar etc.
De certa forma prefiro a "bagunça, indisciplina em sala". Em 2012 uma professora auxiliar (apoio), junto com a coordenadora formulou um conteudo contra a minha pessoa, e apresentou à diretora da umidade escolar, usaram :A professora nao tem postura em sala, autonomia etc.seus alunos sao indisciplinados!
Quem me defendeu? Foram algumas mães, uma em particular - Mae do aluno considerado um dos mais indisciplinado, até no recrei, deixando uma cicatriz da sua mordida no braço da moça, na época o acompanhava durante o recreio. Esse aluno chegava a ficar uma semana sem ir a escola (cicratrizando as surras). Comigo ele mudou de atitude, aprendeu a ler, milagre? Não! Apenas descobrir o que ele mais gostava de fazer, e tambem, afalar a mesma lingua que ele, o diálogo com a familia ajudou, os pais tambem mudaram de atitude.
Ao entrar na sala de aula que estou, a primeira impressão que se tem é de indisciplina, de bagunça... porque em sala geralmente os alunos estao interagindo entre si, criando os seus textos, ou criticando, expondo as suas idéia para os demais colegas, isso gera "movimento"...
Ontem mesmo (15/09), distribuir duas gravuras diferentes em sala, "1- eles teriam que listar os detalhes que mais lhes chamavam atenção, a partir daí produzir um texto interessante - A 2 gravura, eles teriam que completar a imagem, deixar a "sua marca", se assim achasse necessario, após isso produzir um texto, eles opinaram fazer em grupos de 2 e 3..A vice diretora foi até a sala e ... Matematica levei 3 folhetos de mercado (cotidiano) comparamos os preços e destribuir recortes de promoções a cada aluno, para criarem "situações problemas" etc. Depois trabalhamos Grandezas/medidas (Kg - L - ML)
Recentemente como lição de casa, solicitei aos alunos do 2 ano para observar a "lua cheia", nesse dia a " A linda lua" tinha sido noticia no SP TV (da noite). No final produziram um lindo poema, registrei na lousa com eles acertando a rima, depois a lua foi o alvo da aula de geometria.
Passou a ser normal, considerar a indisciplina como um problema de rebeldia, alunos sem futuro, e o aluno que nao consegue ficar sentado na cadeira, concentrado, esses sao taxados de "imperativo", e geralmente sao medicados com remédios fortíssimos.
Geralmente pergunto: o que o seu filho gosta de fazer...ele se concentra quando esta realizando o que gosta? Se a resposta é "sim". Entao o seu filho nao tem problema nenhum.
Anônimo disse…
Muito interessante, vale refletir.
Mais acho que faltou opinião, colocação conclusiva do autor, tipo um norte.

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