O problema é do rato também
Falar de/ou sobre educação nos dias de hoje, num
tempo em que todo mundo parece saber de tudo, exige cautela, mesmo que você
seja um especialista no assunto (o que não é o meu caso, considero-me apenas um
professor, e indisciplinado (foi do que
me acusaram um dia).
Mas, depois que me peguei relendo a fábula O
rato e a ratoeira de Esopo, pela enésima vez, me senti na quase
obrigação de falar sobre o assunto.
(Lembra da estoriazinha de um rato que foi se
queixar aos outros animais da fazenda que o fazendeiro havia adquirido uma ratoeira,
mas que os animais, um porco, um boi e uma galinha, não lhe deram a menor atenção
dizendo que ratoeira era um problema só dele, o rato?). Pois é.
Fiquei penalizado pelo rato e resolvi dar minha
contribuição (ao menos na tentativa de alertar a quem interessar sobre o perigo
da ratoeira da educação, fazenda onde
somos todos ratos).
Bom, como se sabe, educar vem do latim educare ou educere que
quer dizer “levar de dentro para fora”. Ensinar também vem do latim (in +
signum = insignare: colocar uma marca em). Assim eu diria que levar do lugar
conhecido para outro desconhecido é promover em alguém a marca do conhecimento,
de um dado novo. O conhecido é a vida em família e o desconhecido é a vida fora
dela, em sociedade (embora a família também faça parte da sociedade). Portanto,
educar e ensinar são funções que se complementam.
Ao dizer para o filho que não se pode comer com as
mãos e sim com os talheres, ao seu modo, e de acordo com as suas convenções, um
adulto na condição de pai/mãe/responsável está educando? Sim. Está fazendo que
o filho saia daquilo que ele já sabe (comer usando as mãos, um exercício
natural) para aquilo que ele ainda não sabe (comer usando talheres, uma
convenção social).
Mas para um adulto na condição de
professor(a)/educador(a), educar/ensinar não se resume a esse tipo de mudança
simplesmente. O papel do professor (a)/educador (a), portanto da escola, é
informar ao aluno o processo sócio histórico que fez o homem adotar esse ou
aquele costume, essa ou aquela cultura em detrimento de outro/outra.
É neste sentido que começa a educação de
responsabilidade da escola - de dizer as coisas de modo a surtir algum tipo de
conhecimento científico ao ser em formação (o aluno), fazendo que este processe
essa (in)formação e reconheça nela subsídios importantes para seu
desenvolvimento crítico e sensível perante as coisas relativas às ciências.
É claro que a sociedade como um todo, em especial
os pais, devem participar da vida escolar dos alunos (crianças e adolescentes).
Mas acho que esta participação de todos tem seu devido limite de
responsabilidade. As pessoas podem confundir, e quase sempre confundem,
participação colaborativa e responsável com participação efetiva e interventiva
- ou intervencionista. Interferir nas decisões pedagógicas da escola e seus
educadores é um bom exemplo de intervenção irresponsável. Assim como à escola é
cobrado respeito aos educandos, pais e responsáveis também têm de respeitar o
que a escola tem para ensinar a eles.
É da responsabilidade dos pais e de sua
competência, ensinar o que certo e o que é errado, de acordo com suas
convicções e crenças, mas não da Escola. Certa vez tive o desprazer de
ouvir que O Santo Inquérito, de Dias Gomes, usado por mim como
leitura de introdução ao gênero dramático, era um livro do demônio.
Para a Escola, ensinar/educar a partir do saber
ingênuo do aluno é ponto de partida não de destino. O saber ingênuo* é
aquilo que é de dentro de cada um de nós, não dialoga, não é movimento de
um ponto a outro, não constrói conhecimento enquanto não for confrontado com
outro saber. O destino é o que está fora de nós, é a marca do novo,
independente do que este novo represente para nós.
Três coisas devem ser levadas em conta: primeiro,
pensar no que o aluno deve saber por meio da educação escolar que ainda não
sabe, isto é, que outro lugar ou lugares ele precisa conhecer,
partindo do seu saber ingênuo. Segundo (fundamento inicial da educação
escolar), é preciso que o jovem aluno esteja predisposto a conhecer esse novo,
sem o que ele jamais entenderá de fato o significado e o verdadeiro
objetivo da educação escolar. E terceiro (tarefa das mais difíceis, porque
depende de recursos pedagógicos e compromisso profissional), como se leva o
aluno de um lugar ao outro? Ou seja, como se ensina o que é de
responsabilidade da educação escolar?
Nesse sentido, a educação escolar deve ser encarada
como o lugar das teorias, das ciências, das abstrações, das (co)relações entre
ideias, das reflexões, das compreensões e interpretações (leituras) das coisas
do mundo. A educação escolar é o lugar da pesquisa e do diálogo** com
os textos teóricos. O ensino de responsabilidade da educação escolar é o ensino
das competências (aquisição de normas, teorias, fórmulas e formas) e das
habilidades (a prática daquilo tudo que se adquiriu no campo teórico para a
efetiva prática dessas competências).
Diferentemente da educação fraternal/informal (feita
em casa, entre amigos), a educação escolar tem a obrigação de provocar a
inteligência para o exercício da sensibilidade, o que envolve o ensino da
compreensão e interpretação das coisas do mundo. E essa pedagogia deve ser
feita, de preferência (outras são igualmente possíveis, depende dos objetivos),
pela oralidade e pela escrita da Língua, cuja prática é de responsabilidade
exclusiva da educação escolar. Sem esse propósito, a escola não tem razão de
ser. É o repetir-se de outras formas de educação desengajada da reflexão e da
criação e, desta forma, tornar-se-á simplista demais e, em sendo assim,. dispendiosa.
É por meio da educação escolar que se é possível
aprender e apreender tais ferramentas úteis para o exercício intelectual de
lidar com teorias e conceitos, uma vez que é nela que se instauram os métodos,
estratégias e planos de ensino adequados e específicos para tal exercício - ao
menos, assim deveria ser. Teorias conceitos estes que, antes, precisam ser
partilhadas pelo professor/educador, de forma crítico-sensível, com os educandos.
Muitos professores/educadores, sobretudo os que
lidam com linguagem, se dizem incapazes de tornar a leitura de um texto
prazerosa (não acho que seja responsabilidade da escola provocar prazer)
e defendem a falsa ideia de que a leitura profunda de um texto só é
possível depois de anos de estudos. Antes, afirmam, é preciso tornar possível
uma aproximação mais afetiva – não efetiva – do aluno com o texto, sob a
alegação de que nem mesmo em níveis mais elevados, como na graduação, os alunos
são suficientemente capazes de tal grau de abstrações.
Na visão desses professores/educadores, uma leitura
mais profunda do texto afastaria de vez o aluno da possibilidade de
“familiarização” com o texto e, consequentemente, do gosto pela leitura. O
aluno, por sua vez, em função talvez da sua consciência ingênua,
não consegue dar conta do ostracismo no qual está se submetendo: aquele em
que a superficialidade, o explícito, o aparente, os evidentes apresentam-se
como o seu limite possível e passa a ser marcado como um ser limitado e incapaz
de sair do lugar do conhecido (o que diz o texto) para o do desconhecido,
do implícito (o que o texto quer dizer). Em não sendo capaz de lhe proporcionar
esta equação, inteligência e sensibilidade, a educação escolar torna-se desnecessária
e sem valor. Ou seja, não educa nem ensina no seu sentido stricto
(esta é uma concepção fatalista da educação escolar que só interessa a quem
defende o racionamento dos investimentos no setor).
A Escola que faz pensar, elaborar, argumentar e
concluir, a partir de competências adquiridas e habilidades desenvolvidas por
meio da sensibilidade intelectual, não é uma escola elitista e
excludente, como querem fazer crer alguns, a pretexto de uma pedagogia afetiva
e dita mais humanista. Estaremos sendo mais desumanos e pouco afetivos - e
consequentemente muito mais elitistas e muito mais excludentes - se com nossa
postura pseudo-afetiva, não tentarmos levar nossos alunos de um lugar a
outro - ao lugar de um novo conhecimento. Ou seja, se não fizermos dos nossos
alunos sabedores daquilo que eles ainda não sabem, como estudantes, mas,
principalmente, como pessoas que são.
A Educação Escolar, independentemente do nível
social do aluno e de seu grau de conhecimento ingênuo, deve ser o lugar do
diferencial – do ir além do senso comum. Isto é, a Escola deve pôr o aluno em
contato com o senso crítico e analítico das coisas
do mundo, de forma que ele transpasse os limites da inteligência natural e
alcance o exercício da sensibilidade intelectual, aquele que se debruça sobre
as teorias e seus objetos estudados.
Para mim – que me compreendam os leigos e me
desculpem os especialistas - esta sim é a verdadeira razão da Educação Escolar.
Assim, acho que não devemos alienar o perigo da ratoeira (como nos ensinou
Esopo). Basta somente que compreendamos que, a depender de quem nela mexa (e de
como mexa), todos podemos ser vítimas. Não somente o rato.
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* Conceito desenvolvido por Paulo Freire
**No conceito desenvolvido por Mikail Baktin (in Filosofia da linguagem e marxismo)
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