Educação, ética e liberdade
Depois da infalível e
protocolar chamada de todos os dias, o professor anuncia, com expectativa de
professor, o assunto-tema da aula:
- Introdução ao
Romantismo.
Daí, uma aluna, da turminha
das menos intolerantes, ainda bem, diz ter uma questão a fazer. Que bom. Vem coisa
boa aí.
Antes, porém, a aluna, que
parece falar em nome do grupo que a rodeia, o alerta de que a questão não tem
nada a ver com a aula. Tudo bem, mesmo assim. Sempre tem.
- Não é verdade que
roubar é antiético?
A
questão, como se pode ver, não era uma simples questão. Era quase uma
proposição. Proposição, como ensinam
os manuais de Lógica, é toda frase ou enunciado que exprime um pensamento (uma
ideia), falso ou verdadeiro. Na maioria das vezes, carece de análise mais
apurada para se chegar ao seu valor de verdade ou mentira.
Os alunos talvez nem
soubessem disso ainda (compreensível, já que era um segundo ano do Ensino
Médio). Mas, a levar pelas carinhas, a expectativa era de que o professor fosse
um tanto razoável e dissesse “sim”. Já que não era assunto da aula, não devesse
enrolar tanto. Era só dizer “sim” e iniciava a sua aulinha.
E agora professor? O
que fazer? Pensou. Se fosse disciplinado, diria o que os alunos queriam ouvir
(não basta ser professor, é preciso ser virtuoso). Se fosse um alienado, evitaria
maiores embaraços, do tipo ter de buscar conceitos e teorias, e se apegaria ao
aviso da aluna: “Nada tinha a ver com a aula”. Mas tinha.
O professor frustrou as
expectativas. Decidiu fazer o certo, como lhe ensinou um dia Freire. Tinha a
ver com a aula, sim. E como tinha. Mais que isso: tinha a ver com o princípio
de ser um professor indisciplinado. Não disse “sim” nem “não”. Arriscou, como
tem de ser.
- Como podemos definir antiético?
- Aquilo que não é
ético, antecipou-se a aluna, ironicamente suplementada pelos outros.
- Muito bem. Mas vocês me
dariam uns minutinhos de suas éticas?
Ao perceber as caras de
espanto, o professor arriscou ainda mais:
Antiética(o),
dá pra ver, é uma palavra composta (anti,
prefixo grego = contrário) e ética(o),
do grego ethos, que, por sua vez,
significa “próprio do indivíduo”, isto é, do “eu”. Logo, convém dizer que ser ético é estar de acordo consigo
mesmo, com suas convicções, ideias e necessidades. E que ser antiético é não compactuar com nada disso. Ou não?
Marilena
Chauí nos esclarece: filosoficamente falando, ética (ou moral, do latim mores, como se usa também hoje em dia) tem
a ver com valores (ou virtudes). Os do indivíduo e os da sociedade em que ele vive
(moral social ou estética, aquilo que
está fora do indivíduo).
Assim, quando alguém assume um modelo ou norma social, esse alguém está
obedecendo à estética e não a sua ética. Como é quase impossível viver
isoladamente, nem sempre é fácil para o indivíduo decidir entre agir conforme
sua ética, seus impulsos, suas paixões (sujeito passivo) e/ou conforme a
sociedade, aquele que sabe controlar seus impulsos, que sabe discutir consigo
mesmo, atender ao que é legítimo para a sociedade (sujeito ativo ou virtuoso).
Parte mais fraca do embate, o sujeito se sente dividido.
Como exemplo, o professor constrói a cena: filho pequeno está há dias
sem comer. Diante de tantos “não”, a aflita mãe já não tem mais coragem de
pedir. Aprendeu que é sagrado dar pão a quem tem fome. Isso também está na
moral social (na Lei), embora invés de pão, diz-se “comida”. Mas ela talvez não
saiba disso. De repente, um homem vendendo pão, tem bastante pão. A mulher não
quer mais um “não”. “Não” não mata a fome do filho. O pão, sim. Pega o pão
escondido. O filho come com gosto. A mãe fica menos triste.
Nesse momento, parecendo decidida a não aceitar o que acabara de ouvir, uma
outra aluna do grupo o interrompe. Quase ríspida. Ingenuamente indignada.
- Então, o senhor está querendo nos convencer que roubar não é antiético?, dando ênfase à palavra.
O professor sabia do risco. Mas é assim que tem de ser. Aprendeu que todo
bom professor é aquele que provoca reflexão e senso crítico. Indignação também,
às vezes. E isso é ensinar para humanizar. Para a liberdade. Olhou para a turma
com ternura, sem nenhuma autoridade (nunca quis ser) e disse:
- Não. Eu apenas tentei fazer o certo: compartilhar com vocês um pouco
mais do que sabem sobre ética e sobre o que é ser ético, em especial no mundo
em que vivemos. Mas fiquem a vontade para decidir sobre.
O professor certamente pensou em Aristóteles ao dizer assim aos alunos.
E notou mudança no grupo. A maioria o fitava, agora, com outro olhar. De quase encantamento.
O grande pensador grego disse um dia que ser ético é ser livre para
decidir. E liberdade, conforme ele, é a capacidade para darmos sentido novo ao
que parecia intocável, transformando uma situação permanente numa nova
realidade, a partir da nossa ação, observando, é claro, as circunstâncias em
que vivemos.
Pois bem, não é que o professor tinha razão. O questionamento da aluna
tinha mesmo a ver com o assunto da aula. Ser ético, em suma, é ser livre. E liberdade
é um dos princípios fundamentais do Romantismo enquanto movimento literário. Tinha
tudo a ver. Sempre tem. Todo bom professor sabe disso.
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