Sobre filme brasileiro e anjos.



A sala de vídeo já estava preparada. O CD no ponto. Cadeiras alinhadas. Agora só faltavam os alunos. O professor os aguardava ansioso. Certamente, eles também estavam. Era dia de filme.

Como nascem os anjos. A história de duas crianças moradoras de uma favela carioca (Branquinha e Japa) que, sem se darem conta do perigo (compreensível, pela idade, mas há quem discorde), se envolvem numa situação pra lá de inesperada – e trágica.

Não demorou muito. Os alunos entram na sala correndo. Pareciam entusiasmados. Assim é bom. Embora o professor desconfiasse de outras razões que não a aula (mas estava valendo). A pipoca nas cadeiras os deixavam mais felizes. Melhor ainda.  

Assim o cenário estava pedagogicamente favorável. Como tem de ser. O professor, então, anuncia o filme. Também cheio de entusiasmo. Daí...

- Filme brasileiro, eeeeca!

Quase a turma toda. Mas o professor não se surpreendeu. Sabia do risco que era trazer para o espaço escolar o diferente. No caso, um filme brasileiro. Mas é assim que tem de ser, como apreendeu um dia.

O diferente (no caso do filme brasileiro), sabe o professor, indispõe a todos. Não só os alunos. Professores e gestores conservadores e bem disciplinados também.

Certa vez um colega de ofício o questionou: “Já vi, mas não há nada de angelical no filme”. E outro: “Não é impróprio? Só tem palavrão”.

Não. Tem linguagem rebuscada e formal também. Aliás, os diferentes usos da linguagem no filme era um dos objetos de indagações que o professor faria. Tinha a tudo ver com a aula. Sempre tem.

Vale aqui lembrar da teoria da Gramática Universal de Chomsky. Em sua estrutura sintática, às Línguas têm princípios (comum a todas as línguas) e parâmetros (específicos de cada Língua). É legítimo dizer portanto que, assim como as gírias, os palavrões são “parâmetros” do léxico (vocabulário). E se existem é para serem ditos, ainda que em certos contextos e situações, como defendem os menos conservadores.  

A maioria absoluta dos brasileiros podem ignorar a teoria de Chomsky (compreensível). Mas sabem usar bem (e bota bem nisso) os chamados palavrões como forma expressiva de suas angústias. Angústia, do grego angor, que originou o latim, angustus (= aquilo que se bota para fora). Ou seja, palavrões são desafogos linguísticos.

Como não é certo sonegar conhecimento aos alunos, todo professor deveria se livrar de uma vez por todas de suas angústias, a fim de não se prender a preconceitos. Pois certo é que toda competência tem de ser compartilhada (mesmo as que são consideradas por muitos irrelevantes para a escola). Além do que, a arte existe como desafogo. E um filme é antes de tudo uma obra de arte.

- Só tem palavrão e violência, professor!

Pois é. De novo, quase a sala toda repete o que o professor já tinha ouvido antes (e de um professor). O curioso é quem nem sequer conheciam o filme. Como todo professor que faz o certo, o professor foi prudente. Viu que não se tratava apenas de chacota juvenil. Mas de crença mesmo, cuja asserção vem de algum lugar e tempo.

Certo jornalista disse certa vez que “está em cada um de nós, desde os tempos de colônia, o desprezo pelo que é nosso (o país)”. E na escola (naquela que voltou ao alcance do povo lá pelo fim dos anos 1970), assim como fora dela, não é diferente. Também predomina o gosto pelo estrangeiro. 

O que é daqui não presta. Tudo que aqui existe de bom está associado ao que vem de fora. Somos uma nação apoucada, para ser um pouco erudito. Daí que entre os jovens alunos filme bom é filme estrangeiro. Em especial os americanos.

E por ser assim, reconhece o professor, a parada é ingrata. E cara. Muito cara, às vezes. Mas, para um professor indisciplinado, é também oportuna e desafiadora. Como tem de ser. E apesar da ingênua asserção, o filme chega ao fim.

- Não vi nenhum anjo!

Viram sim. Principalmente depois que o professor arriscou. O filme todo, disse ele, é um receita de como fazer nascer anjos (Anjo, do latim angelus, do grego angelos, que, de acordo com a cultura judaico-cristã, significa o surgimento de mensageiros de deus entre os homens, aqueles que ascendem ao céu, geralmente os puros de pecados, como as crianças).

Depois disso, os palavrões nem sequer foram mais lembrados como palavras que tanto nos assustam (sobretudo na a escola). Senão como expressões de angústias vividas por Branquinha e Japa, num espaço de opressão (aliás, comum a muitas outras crianças do mundo real).

Mas o que mais deixou o professor confiante de que fez o certo em arriscar foi que um dos alunos observou (assim como quem para reforçar a tese de que “tudo daqui não presta”, nem mesmo nós). Ele viu que o bom e sempre solidário estrangeiro é quem, na história do filme, nos chama atenção para o que muitos de nós não querem enxergar: o trágico nascimento de anjos entre nós. 

- "Basta dá a uma criança as competências  necessárias (ou não) para que ela pereça", concluiu o aluno.

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