Sobre analfabetismo e preconceito


Formado a partir da junção de alfa e beta (duas letras gregas), o termo alfabeto remete ao conjunto de letras (ou gráficos) criado para registro da Língua. 

No sentido que lhe é dado pela linguística moderna, código de comunicação verbal humana, a Língua é antes um fenômeno oral. Sonora. Natural. A escrita vem bem depois.

E como toda invenção, a escrita que veio bem depois, foi um marco na história humana. Tanto que é confundida até hoje (até por quem não devia, diga-se) como a própria Língua. Uma tecnologia útil e avançada, é verdade, para a época em que fora criada. Mas não é a Língua propriamente dita. É coisa criada. E como coisa criada, se ensina e se apreende é na escola.

Antecedida da partícula-prefixal a(n), tem-se analfabeto, palavra que parece ter sido formada dentro do nosso vernáculo mesmo. Talvez por isso tenha ganho autonomia e extrapolado o sentido para o qual fora criada: de todo aquele que não conhece o conjunto das letras da Língua (gráficos) a ignorante absoluto.

Ou seja, em seu livre arbítrio usual, analfabeto remete a todo aquele que não sabe das coisas necessárias para exercer determinadas outras coisas. Em especial as coisas que exigem boa fala, excelente interpretação e escrita perfeita. Ufa! Quanta coisa importante a escola tem de dar conta, né, mesmo?

Mas foi na escola que testemunhei algo, em princípio,  cômico (se não fosse doloso). Isso nos tempos de um certo ex-metalúrgico que ousou ser presidente. Era comum nos Conselhos de Classe e reuniões pedagógicas justificar o mal desempenho em Português dos meninos e meninas com o fato da existência de Lula e sua ousadia.

Nada pedagógico, diria alguém menos virtuoso e pouco dado a disciplina. Mas era um pretexto, em forma de chalaça (do espanhol charlaza = falatório, conversa), nunca antes dito na história do país, diga-se, para justificar o que não fora ensinado certo.

Freire classificaria tal pretexto de “socialmente injusto”. O mestre da pedagogia insistia em dizer: “Não saber ler nem escrever não é condição para ser analfabeto”. Mas parece ser muito mais fácil pôr a culpa em alguém (como diria, entre tantos,  Raul Seixas, o rapaz latinoamericano) do que fazer o certo, né, mesmo?

Já Marcos Bagno, em sua Sociolinguística de enfrentamento, sinaliza que chalaças do tipo cheiram mesmo a preconceito, ou seja, opinião formada antes dos conhecimentos necessários para se afirmar algo sobre outro algo (pre = anterior; e conceptus = conceito, opinião, juízo). E, para ele, não há preconceito maior que o preconceito linguístico. É inquebrantável, diz. Não se perdoa um plural mal feito, uma concordância equivocada que seja. De jeito nenhum. Coisa de analfabeto.

O que dizer então da poesia de Patativa do Assaré e Cora Coralina e dos relatos de Carolina de Jesus que não conheciam o alfabeto? Se este fosse o único requisito, conhecer as letras em sua harmônica predisposição, eles não existiriam. E quem teria perdido com isso era a humanidade. Mas felizmente eles existiram e reexistirão.

Mas o preconceito, como tudo na vida que não se apresenta bem fundamentado (por isso mesmo, preconceito), um dia se quebra. Bagno que me perdoe (Einstein também), mas mesmo o preconceito linguístico pode ser desintegrado.

Certa vez, em uma aula sobre tipologia textual (veja só, sempre tem a ver), um aluno do terceiro ano do Ensino Médio se apresentou bastante incomodado desde que, por alguma razão, em dado momento, se falou em analfabetismo. Sempre considerei que em todo incômodo, reside um brado de inquietude, uma sensibilidade incontida. Naquele momento, em respaldo a minha consideração, o aluno matou a pau (desculpem-me pela expressão, mas é que conota bem o meu querer dizer).  

Primeiro, uma bela introdução. Disse ter visto num programa de TV o então presidente Lula discursando eloquentemente na ONU (o eloquentemente – modo de falar bem, admirável, persuasivo, - é por minha conta, pela maneira como se fez querer compreender o incomodado jovem aluno). Depois concluiu com o que se pode chamar de perfeito axioma (do grego axio + ma = verdade inquestionável):

- Professor, se analfabeto é quem não saber ler, então não é verdade que Lula seja um analfabeto porque ele estava lendo o que dizia.

É nessa hora que tudo parece valer a pena, mesmo quando a alma é pequena (nesse caso, a alma de ser professor).  O garoto me deu a oportunidade de ensinar o certo. Então eu disse aquilo que aprendi e gostei de ter aprendido um dia sobre analfabeto e seus derivados linguísticos.

Em tese, levando em conta que a Língua é som (mesmo em pensamento), ninguém pode ser considerado analfabeto, pois toda pessoa que fala o faz por meio da Língua. E, se faz assim, é porque do seu jeito, bem ou mal, todos dizem o que se quer dizer em sua Língua. O que nem todos sabem (e os todos neste caso são muitos, tenham frequentado boas escolas ou não) é como dizemos tudo sem precisar saber das letras. Sem conhecer o alfabeto.

Isto dito, como chamar quem produz discursos imensos e ler textos imensos para públicos igualmente imensos e diversos, hein? Como chamar, né? Que dizer então de quem, além de discursos imensos na ONU, leu Casa Grande e Senzala? Pode-se se dizer tudo, menos que seja ignorante (isto é, analfabeto). 

Com seu ingênuo incômodo, o jovem aluno foi preciso na desintegração do preconceito. Mesmo não tendo lido grandes obras nem feitos discursos imensos para públicos imensos, ele mesmo não se sentia um analfabeto: 

- Senão eu não teria sido aprovado no SENAI, finalizou, lembrando que o ex-presidente também fora quando ainda garoto assim como ele.

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