Sobre estímulo e fracasso
Certa vez, durante uma reunião de trabalho
pedagógico, foi lançado o seguinte desafio aos professores da escola: levantar
um tema e abordá-lo didático e pedagogicamente a partir da leitura de um filme.
Há época já estava em debate o estimulo (mais precisamente a falta deste) como invenção da
pedagogia que culpa o professor pelo desinteresse do aluno. Mas como era com
filme, uma mão na luva para quem sempre recorreu a este expediente para abordar
temas polêmicos em sala nas aulas de leitura.
Um dos filmes usados por mim era O clube do Imperador, de Michael Hoffmam. A estória de um professor de História, Willian
Hundert, que tenta a todo custo estimular um aluno ao gosto pelos estudos a fim
de fazê-lo um Sr Júlio Cesar (referência ao imperador da Roma Antiga), nome do clube, criado por ele, professor, do qual fariam parte os melhores alunos em História Antiga na história do filme (uma espécie de clube de notáveis).
Como não conseguiu mudar o que fora plantado no início da formação do caráter do aluno e com isso, quem sabe, transformar o seu destino, o professor se sentiu um profissional fracassado.
Como não conseguiu mudar o que fora plantado no início da formação do caráter do aluno e com isso, quem sabe, transformar o seu destino, o professor se sentiu um profissional fracassado.
Foi este filme que escolhi para levar ao desafio pedagógico
proposto (ao menos, com os alunos eu fazia sucesso). Mas falar sobre estímulo
para quem é cobrado por dar estímulo é diferente. Diria, é um pouco delicado.
Fui o último a discorrer (tudo bem, nunca fiz
questão de não ser o último nessas ocasiões, porque é sempre melhor já saber o
que os outros pensam). Iniciei despertando os colegas para o fato de que o
desapreço pela educação escolar era vício antigo. Não de agora. Caras de
surpresa na plateia. Me senti no caminho certo.
Em seguida, ressaltei que, entre outras coisas,
para que toda educação e/ou ensinamento surtam o efeito esperado é preciso,
antes de tudo, que o outro acredite ou esteja predisposto a acreditar naquilo
que a escola tem a ensinar. Caras de reflexão.
Perorei: caso contrário, a intenção de
educar/ensinar cai no abismo da escuridão, junto com toda a nossa ilusão de (in)
competência que foi conferida à educação escolar (e por extensão aos
professores) pela sociedade. As caras agora eram de alívio (claro, foi de
propósito, como se uma aliviação de barra
de classe). E, de repente, todos queriam dissertar sobre o tema. Contágio total.
Prossegui: o drama do professor na estória do filme
é, na verdade, uma metáfora do drama de todos nós, professores do chamado mundo
moderno, que, por pressão da sociedade ou por ilusão da profissão, sente-se na
obrigação de interferir na condição humana do outro. Trágico engano. Esta competência
não é exclusividade somente de quem educa e/ou ensina, é também de quem quer
ser educado e/ou ensinado.
Daí recorri a Olivier Reboul. Em sua Introdução à
retórica (1988), ele afirma: educar e/ou ensinar são atos praticados por meio
da persuasão interativa, utilizando-se de argumentos ou atitudes
argumentativas, toda educação ou todo ensinamento, em qualquer fase da vida, só
terá efeito se o outro, ou seja, aquele a quem pretendemos atingir com nosso
conhecimento, estiver predisposto a receber, com a devida importância, aquilo
que ensinamos. E a predisposição de aprender, no caso da educação escolar, está
acima do professor. Tem a ver com a cultura de valor de um povo.
Por uma ou outra razão – quem sabe por influência
da educação doméstica, na adolescência; quem sabe por seu próprio interesse,
quando adulto –, no caso do aluno do filme, alguma coisa fez dele um sujeito
predisposto às ideias da ambição e da arrogância, por isso persuadido, desde
cedo, a ser o homem ambicioso e arrogante, no que se tornou.
Os princípios morais e éticos presentes no discurso
do professor podem até ter contribuído como reforço a posição contrária do
rapaz - afinal, é em função do que o outro diz que formulamos nossas respostas,
segundo as teorias da retórica clássica e moderna. Mas não foram suficientemente
convincentes para que moldassem, muito menos mudassem, o seu caráter, como
pretendia o professor.
Fracassados nos sentimos todos diante de situações
como a que viveu o professor Hundert. Não só nós professores, mas todos aqueles
que lidam diretamente com questões de ordem emocional. Afinal, ao contrário do
que se imagina, somos também sensíveis a emoções. Talvez por isso, pretendemos
ainda muitas vezes, como foi o caso da personagem, assumir a figura do
sacerdote, cuja missão é mudar o (des) caminho da vida de cada um.
Em especial nos dias de hoje, quando se sabe que
estão em evidências vários outros fatores sociais que concorrem diretamente ou
indiretamente, e com maior peso, contra as matérias e disciplinas escolares, o
sacerdócio pedagógico (também gosto de dizer sacerdotismo) é uma máscara que muitos insistem em usá-la pensando
em ser benquisto e útil. Em se tratado de educação escolar isso nem sempre pode
dar certo.
Soluções paliativas como a receita da educação
continuada (também conhecida como aprovação continuada), a pretexto de evitar a
repetência e o desestímulo, parece ter sido um remédio inadequado e
extremamente perigoso. Tanto que que foi confundida (por descaso ou por ignorância)
com aprovação continuada.
No filme, o professor tentou remediar o aluno ao
forjar sua nota a fim de curá-lo da arrogância, a fim de torná-lo um seleto do
clube do imperador perante os outros alunos. O resultado, como ele mesmo
constatou anos depois, foi dramático: além de arrogante e de mau caráter, a
exemplo do pai, o rapaz se tornou um homem ambicioso, um valor altamente
maléfico à humanidade, quando utilizado de forma inadequado e que em nada
contribua para o histórico social das relações humanas.
Naquele momento, uma das professoras, que havia
trinta anos continuava lecionando por meio de sua pedagogia (e se orgulhava
disso, porém sem mais esperanças de caminhos e descaminhos, como ela mesma
dizia), disse:
“Vai ver que é porque nos falta alguém dizer que
não somos os únicos responsáveis pelos problemas de ordem moral ou ética da
humanidade”.
Na mosca. Ao que parece, também tive sucesso com os
colegas. Estava de bom tamanho. Não era mais necessário prolongar o assunto (ao
menos naquele instante). Mas não podia deixar de encerrar minha parte no desafio
corroborando com a experiência da colega.
Então disse: mais que depressa, portanto, é preciso
nos convencermos e convencermos também a sociedade e governos de que nem toda
receita tem eficácia na cura de uma doença que é crônica – no caso da educação
escolar, a doença da pobreza cultural e da ignorância, mantidas a séculos como estratégia
de poder ou de alienação.
Finalizei: infelizmente, não depende só de nós, os
professores, ainda que fôssemos plenos de inteligências, que todo mundo chegue
a ser um senhor Júlio César. O estímulo, por mais eficaz que seja, depende
muitas vezes mais de quem recebe de quem o dá. Senão, o clube do imperador vai
sempre ser um fracasso.
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