Um drama do demônio
Quem
é professor de literatura sabe (talvez dissimule, mas sabe, sim) como é difícil
introduzir os estudos do gênero dramático (teatro) num primeiro ano de Ensino
Médio. Mais ainda, se ficarmos só com o que os livros didáticos nos dão. Gil
Vicente e suas farsas e autos em português arcaico se torna um drama real (com
perdão do trocadilho) para a maioria dos jovens alunos.
Insisti
por algum tempo, mas não deu. A coisa não fruía. Fui à caça de obras do gênero
em linguagem moderna. Eu tinha de fazer algo novo. E o novo eram ao autores
modernos. Não me faltaram opções. Entre tantas encontrei também O Santo Inquérito, de Dias Gomes,
publicado pela primeira vez em 1966. O texto chega a ser
até ingênuo, embora de uma proposta teatral enriquecedora, o que me levou a
sugeri-lo entre as leituras para os primeiros anos.
A obra certa para o ensinar certo, pensei. Um belo exemplo de drama (atos,
rubricas e indicações cênicas singulares), o conflito entre religião, fé e
pecado (tema recomendado para a primeira série do Ensino Médio), além da
questão da comunicação, ou mais precisamente dos ruídos na mensagem comunicada
que levam ao mal-entendido (eis aqui a transversalidade com a linguagem. Tudo a
ver). Os alunos vão adorar. Quem sabe quisessem até encenar a peça, como é o
propósito de todo teatro. Depois a gente ampliava o ensino do gênero apresentando
as farsas e autos de Gil Vicente, e outros introdutores do teatro, planejei, como
parte de um construto histórico. Me sentindo o professor, o cara.
Mas
os seguidores de Piaget, os construtivistas, já haviam me alertado um dia que, também
em pedagogia, como quase em tudo na vida, toda experiência inovadora, mesmo
sendo efetiva, e na dosagem certa, pode ter efeitos colaterais. Esta é uma
quase absoluta verdade.
Certa
vez, numa aula que nem era de Literatura, senti uma pequena amostra desse
efeito. Um aluna, das mais espertas e participativa, questionou, depois
anunciar que havia lido o livro:
-
Professor, então o senhor quer dizer que a igreja mata as pessoas que pecam?
Estava
claro que a menina precisava de ajuda, pois sua leitura não fora bem
construída. Não ultrapassou a barreira do inteligível para o sensível. Ficou
apenas superficialmente no tema/assunto (compreensível). Era preciso interferir
como um professor progressista (aquele
que ensina com segurança e mansidão, segundo Freire). Interferi.
Como
assim, afirmar que eu (no caso, “o professor”) a instiguei a pensar assim?” Nem
sequer estava claro se o autor da obra teria querido dizer alguma coisa nesse
sentido. Nem, muito menos, se a estória tinha por base fatos reais (por que eu
então o diria?). Tem gente que insiste
nesta tese, de que fatos reais teriam inspirado o autor (mas não se sabe, pura
especulação). Para mim, o drama de Dias não passa do resultado de sua
genialidade criativa: uma jovem católica (Branca Dias) que fora condenada à
morte por, supostamente, ter pecado conta a igreja a qual era fiel.
Em
outro momento, mais uma amostra do efeito: um aluno, não tão envolvido assim,
mas não menos esperto, disse que a mãe havia dito que o livro era coisa do
demônio. E o proibira de ler. Situação mais delicada que a da menina porque a acepção da obra na cabeça do menino era a
acepção da mãe. O que fazer?
Àquela
altura, o tema da santa inquisição ainda
era ignorado pela maioria dos alunos. E surpreendente para os que se dedicaram
a tomar conhecimento do assunto desde cedo, seja por meio da Literatura, seja
por meio da História - talvez fossem os casos da aluna e do aluno em questão (a
maioria nem sequer lera a obra). Também compreensível que em situações assim, de
algo que surpreende, que a polêmica seja
natural (não a polêmica em sua origem latina – relativo à guerra, mas no seu
conceito atual: construção do conhecimento). O professor que pretende ser progressista tem de esperar por isso.
Ele tem de saber ancorar seu ensinamento neste sentido, a fim de permanecer
imparcial diante da polêmica criada. Mais:
tem de saber que é um risco fazer uso da arte e toda sua liberdade para permitir
ao outro a expressão do pensamento crítico (o que nem sempre é convergente com
nossas expectativas).
Foi
por pensar assim, como um professor progressista que, amparado nos seguidores
de Piaget, tomei o questionamento da menina e a acepção do menino (este que
parecia decido a não ler a obra de jeito nenhum) como exemplos de atos
construtivos e, por que não dizer, de coragem e de rebeldia. Era preciso então
vencer os temores, os meus (sobre como falar do assunto sem receio), e os dos
alunos (como fazê-los aceitar que a ideia daquela leitura era a construção do
conhecimento sobre a estrutura da obra e sua classificação enquanto gênero). O
resultado? Não, não houve encenação como eu imaginei. Mas ficou para os meninos
e meninas a marca do novo (o que era um teatro), como eu queria. Não, as
paixões sobre o assunto também não foram esquecidas. Mas não era minha intenção
que fosse assim. Continuei apostando na dose - no caso, a leitura de O Santo Inquérito para o ensino do
teatro enquanto gênero literário.
Mas
foi por ocasião de uma reunião de pais e mestre que senti de verdade o pior efeito da inovação. Era a segunda reunião do ano. A sala de reuniões estava lotada. Havia pai e mãe que
nunca tinha visto. Algo que ao mesmo tempo que dava importância, me dava temor.
Mas um professor que ensina certo não pode esconder seus temores, né, mesmo?
Dei início à reunião (o de sempre: boas vindas, informes e considerações sobre
a turma e agradecimentos). Nem bem terminei, na primeira fila, próximo à porta,
alguém pede licença para falar. Era uma mulher alta e bem vestida. Com cara de
poucos amigos. Não demonstrava nenhum pouco está ali para me tecer algum elogio.
Pude ver nos seus olhos nenhum sinal de resiliência. Tirou um livro da bolsa e perguntou:
-
Professor, pode me dizer que livro é este?
Como
eu não podia saber que livro era aquele? Era O Santo Inquérito, claro. Mas claro também estava que saber o nome
do livro não era a intenção da mulher (que nem sequer se identificou. Não, não era a mãe do menino), o que se
confirmou logo em seguida sem que ao menos me desse tempo de responder.
-
Este é um livro do demônio, senhores.
Disse,
entre outros saberes desconhecidos da obra, erguendo o livro para que todos vissem a prova do crime, se dirigindo aos outros pais e mães
presentes. Por um
momento me senti a própria protagonista do drama escrito por Dias. A mulher era
a personificação dos inquisidores. Tentei, mas de nada adiantou fazê-la me
ouvir sobre o objetivo da leitura da obra: uma leitura didático-pedagógica do
gênero dramático.
Ao
finalizar sua crítica ferrenha à obra de Dias e ao que ela chamou de método doutrinador
do professor (no caso, eu), a mulher ainda desdenhou da minha função: “Não
tenho mais tempo a perder com isso, porque eu trabalho”. E foi embora deixando uns desconcertados e
outros olhando feio para mim.
É
comum e compreensível (embora discutível) que, por causa da vida para e pelo trabalho,
a maioria dos pais não tenha tempo para a vida escolar do filho. O que não
deveria ser comum (muito menos arbitrário) é que pais e responsáveis legais interfiram
no trabalho do professor sem conhecer as razões que o levaram a optar por
determinada estratégia didático-pedagógica. “Não é ético nem rigoroso criticar
o que não conhecemos”, disse Freire certa vez. Eu diria mais: diria que a crítica
ao outro (ou ao seu trabalho) sem fundamento é vergonhoso e imoral.
O
que diria Dias? Acho que ele também concordaria comigo: que a parada é mesmo
dura para quem ousa fazer diferente.
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