Conto: As descobertas de um menino
Como toda criança pobre, o
menino não tinha brinquedos de fábrica. Para não deixar de ser
criança, como todo menino que se preze, os inventava.
Fazer enterro de lagartixas,
atirar de baleadeira para o alto e observar formigas carregando miolos de pão
para dentro do formigueiro eram alguns de seus passatempos preferidos.
Quanto a escola, como ainda
nunca tinha ouvido falar disso, não lhe fazia falta. Brincava.
Mas um dia, sem ser de
costume, ele flagrou a mãe cheia de carinho e orgulho dizendo ao irmão mais
velho:
- Hoje você vai para a
escola, acomodando uma tiracolo que ela mesma fizera no ombro do irmão.
“Escola!”, espantou-se o
menino.
O irmão estava até de banho
tomado e vestia uma roupa nova e diferente: calça azul-marinho, camisa branca
bem engomada e conga preto com meia também branca. Também não era de costume.
“O que seria e para que
servia ‘escola’?” Se perguntou.
Desconfiou que o irmão também
não soubesse, pois ele parecia um pouco incomodado com o orgulho da mãe. Não
era de costume.
Mas, seja lá o que fosse e
para o quer servisse, do nome “escola”, dito pela mãe com muito entusiasmo, o
menino já havia gostado.
Deveria ser um lugar muito
bom e cheio de requinte e boniteza, senão a mãe não ia arrumar o irmão com
tanto cuidado daquele. Quase querendo ir também.
Mas bem não atravessou a rua
de solo arenoso naquele dia, o irmão entrou no sítio que ficava logo adiante,
onde o menino gostava de pegar as frutas que caiam do pé pra comer – outra de
suas brincadeiras.
Então, “escola” é o sítio!
Alegrou-se o menino com
aquela descoberta. E pôs-se a pensar nas frutas e nos pássaros que lá cantavam
todos os dias. Dava para ver de casa quando não estava brincando:
abacateiros, mangueiras, cajueiros, jambeiros, araçazeiros, goiabeiras e tantos
outras que nem a mãe sabia direito os nomes. Já os pássaros eram de várias
cores e tamanhos.
“Que bacana!”
Noutro dia, não se aguentando
de tanto espanto, ele nem se lembrou mais de brincar. Correu para perguntar
a mãe, enquanto esta arrumava o irmão cheia de carinho e orgulho:
- Mãe, o que se faz na
escola?
Surpresa, a mãe pareceu não saber responder de imediato. Também o
acarinhou. E só depois de muito
pensar disse:
- Estudar.
- E o que é “estudar”?
Insistiu o menino, esperando
a mãe dizer que era o que ele estava começando a imaginar que fosse: comer
frutas e cantar como pássaros. Mas disse a mãe:
- Aprender ler e escrever.
- “Ler e escrever”?
- Sim. É necessário.
Intrigou-se o menino. Para
ele, não podia haver algo mais necessário do que saborear frutas e cantar como
e com os pássaros em um sítio. A mãe estava de brincadeira, só podia ser. Até
porque, aquilo de só ‘ler e escrever’ não combinava com o que ele passou a ver
todos os dias, desde que descobrira que “escola” era o sítio: as crianças que para lá iam e de lá saiam ostentavam uma alegria e uma felicidade dessssssssssse tamanho.
Recorreu ao pai. Mas mais que
a mãe, o pai era um homem naturalmente bruto, dado somente ao que mais sabia
fazer: pavimentar ruas de dia e tomar conta da venda de noite.
- Perda de tempo, mais vale
trabalhar, disse, sem esticar conversa com o menino.
O pai também não sabia. Mas, como já tinha descoberto
o que era "escola” - o sítio -, o menino queria descobrir mais. Assim, já
não flagrava mais os carinhos da mãe ao irmão. Tinha se tornando normal de
todos os dias. Também não perguntou mais o que era
“estudar”. Não podia ser só “ler e escrever”, como a mãe dizia. Nem
"perda de tempo", como pensava o pai.
E depois de muito querer
perguntar, perguntou a mãe um dia:
- Quando eu vou para a escola?
- Você ainda não tem sete
anos.
É que famílias iguais a do
menino só podiam botar os filhos na “escola” quando eles chegassem aos sete
anos. E ele só tinha seis. Não havia sítios, ou melhor, escola para todo mundo.
Resignado, porque de tudo
ainda não sabia, claro, restou ao menino esperar os sete anos chegarem. E chegaram.
Quando já eram outras as
brincadeiras de menino. Tipo prender fitas em besouros para vê-las tremulantes
quando eles voassem, fazer casinhas com cacos de tijolo e barro ou jogar
futebol de botão com tampas de garrafa na ardósia em que a mãe batia roupa.
Com o mesmo carinho e orgulho
dispensados ao irmão, a mãe acarinhou-lhe e disse:
- Chegou a sua vez, fazendo o menino sorrir largamente.
E lá se foi ele orgulhoso
para o sítio, de tiracolo e tudo.
Os cajueiros, as mangueiras,
os abacateiros, as goiabeiras, os jambeiros, os araçazeiros, as frutas-pão,
todas estavam lá. Os pássaros também, em suas cores e cantos. E foi quando descobriu que a escola ficava no sítio.
E que lá, além de algumas
mesas e bancos, também havia letras, números e livros de poesia e uma jovem
chamada Maria que era a professora, cuja existência ele também
desconhecia.
E então descobriu que estudar
não era somente sentir o sabor das frutas e ouvir o canto dos pássaros. Era bem
mais que tudo isso junto.
E encantou-se o menino pela
escola. Tanto que o tempo passou em seu redor que ele nem viu. E sem nenhuma
perda. Aprendeu ler e escrever os nomes das árvores e dos pássaros que conhecia, e de outras coisas, reais e imaginárias.
Um dia, por fim, ele
despertou da meninice, sem deixar de ser menino. Mas, por sorte, já tinha descoberto o real sentido de
“estudar”:
“Um ato de vontade”, dissertou com entusiasmo.
Vontade de querer ser. De
ser crítico perante as coisas do mundo. De querer pensar a própria existência.
De se permitir dialogar com tudo aquilo que a gente ainda não sabe.
Vontade de ter curiosidade e
respeito pelo desconhecido, pelo diferente. Vontade de descobrir e
descobrir-se. De aprender para compartilhar o saber com
outros, com todo mundo.
Sabe de uma coisa? Eu conheci
aquele que era esse menino. E ele me contou um segredo que eu preciso agora
desvendar: quando chovia não tinha escola lá no sítio da jovem professora Maria. Mas
inacreditavelmente os pássaros insistiam a encantá-lo com sua sinfonia de cantos e
cores. Talvez porque soubessem que a chuva não demorasse tanto e que
aquilo de estudar ia fazer dele um sujeito bem menos infeliz num futuro. E fez.
É que o menino se tornou um
professor. E ele me disse que ensinar é a mais grata das aventuras que vivenciou. Mais do que quando precisou atravessar um rio sem saber nadar fugindo de dois cães ferozes que o perseguiram a mando de um sitiante muquirana que não permitia a ninguém pegar mangas caídas no chão.
Para ele,ao ensinar,
assim como estudar, a gente está sempre descobrindo e se descobrindo.
Ah, talvez sem perceber, ele
também me revelou um dia aquela que, para mim, foi a mais importante de suas
descobertas:
“A escola pode não ter sido
tudo, mas foi muiiiiiita coisa na minha vida”. Disse, não parecendo nada
infeliz.
Agora, para terminar, sou eu
quem vou contar um segredo. Quando menino, eu também pensava que comer bombom de
chocolate que a mãe fazia era a coisa mais necessária do mundo. E era mesmo.
Porque, aqui para nós, que criança não gosta de ser feliz, né!
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