O professor, o gestor e os sapos



Antes da fala do imediato convidado, que ainda não havia entrado na sala de reunião, em sussurros, os professores da escola para a qual fui designado professor, debatiam a obrigação de ter de participar de uma das inúmeras conferências online exigidas pelo governo (parte também das obrigações de ser professor). O tema da conferência era COMO SER GESTOR EM SALA DE AULA.
Ao tomar um dos lugares vazios na sala, logo um dos colegas vira-se e pergunta:
- E aí, professor, qual a sua opinião a respeito?
Sensação estranha me abateu naquele momento. Será que depois de tanto tempo estava ainda na cara a marca da indisciplina (foi do que me acusaram um dia, por querer fazer o certo: reivindicar direitos, já que os deveres sempre os cumpri e bem).
De repente, me lembrei do meu pai, um quase semianalfabeto que me dizia sempre da tese do “gato escaldado” em situações de embaraço. Pois bem, era preciso ser gato escaldado naquele momento. Ainda mais quando se está de regresso, se assujeitado ainda aos novos ditames.
- Sobre o quê?
Despistei, pois precisava pensar no que dizer. Como muitas vezes a gente faz diante dos alunos em sala a fim de não falar algo que soem bobagem para eles (só que com aluno, como sabemos, é muito pior porque tudo vira contra o professor). Não foram poucas as vezes que me meti em enroscada ao entrar no truque do debate democrático com alguns deles. “Então, professor, o senhor quer dizer que deus não existe?”, “O quê? Político não é ladrão? Pra mim todo político é ladrão, o senhor é político, por acaso?”, “...Olha, professor! o senhor não pode falar palavrão, ‘desgraça’ é um palavrão, minha mãe disse”. E por aí vai. Mas tirando o risco de até onde chegariam as ingênuas acusações, até que era pedagogicamente divertido (e produtivo).
- Sobre essa nova obrigação de sermos gestor de sala.
O colega insistiu.
Aqui pra nós, preciso confessar uma coisa: nunca apreciei o termo "gestor" em qualquer situação, principalmente na educação escolar. Sempre o associei à relação de força, de domínio do outro, de autoridade máxima. E tinha lá minhas razões.
Certa vez, encontrei Stephen Knitz, lá em 2011 (coincidentemente o ano em que me ausentara do ambiente escolar), dizendo que gestores eram aqueles que gesticulavam, que apontavam com o dedo indicador 200 anos atrás para onde o carregamento de alimentos deveria ser deixado ou estocado pelos empregados. Knitz certamente fez como eu e foi também a origem da palavra: “gestão” vem do latim gestio + onis e quer dizer (isso mesmo!) “gesto”, “gesticulação”. Logo, gestor é quem usa o indicador para indicar, para apontar, para dar comando. Comandar. Knitz, então, dirige-se assim aos atuais administradores adeptos do termo, ele mesmo reconhecido administrador de empresas e premiado influencer do mundo dos negócios: “Quem usa o termo gestão (como sinônimo de administração) está 500 anos atrasado”. É Knitz quem diz.
Nós, os professores, nunca daremos um bom gestor de sala (no mínimo, pseudos moralistas) porque não existimos para isso, não fomos feitos para isso. O papel do professor, para mim, é ensinar o certo e de forma certa (mesmo se for para ser acusado de indisciplinado). E isso se faz com interação, diálogo, com desvendar de mistérios, compartilhando competências e habilidades, sem assumir para si as verdades teóricas (a não ser que sejam suas de fato).
Pensei em dizer algo assim, direto ao ponto. Mas senti o escaldo da maturidade aquecendo as costas e preferi atenuar a questão:
- Olha, para quem já foi quase sacerdote (aquele que ensinava por missão), educatore (aquele que ensinava por amor) e mediador (aquele que ensinava nada, só um instrumento), acho que devemos encarar essa nova obrigação com resignação, ou...
Mas daí, antes mesmo que eu terminasse de dizer, um outro colega replicou um tanto revolto, talvez me acusando de pusilânime (já que era um professor de filosofia, achei pertinente o termo):
- Quer saber, estão cada vez mais nos enchendo de atribuições, e a gente não reage, é isso que penso.
No que outros também o seguiram, iniciando assim uma exaltante discussão, só interrompida com um forte e debochado “pssssssssssssiu” da coordenadora, acompanhada do imediato que acabava de chegar para dar início à reunião.
- Ô, silêncio, professores! Parecem mais alunos da 6ª série.
Foi um montão assim de desabafos, de saturações, de insatisfações que ouvi (os quais também já disse um dia), todos forçosamente sufocados pelo tempo em detrimento dos sapos antes engolidos (a honra e a virtude que exige a profissão). Mas a coordenadora, que também um dia professora, só ouviu barulho como os alunos da 6ª série. A comparação tinha sempre a pior sala como referência (outra responsabilidade nossa). Seria cômico se não fosse triste. A reunião iria começar e preciso era assentir o que diria o locutor. Concordasse ou não com o dito. Como tem de ser.
De novo, aqui pra nós, o que fizeram da nossa profissão? A que posição de desabono chegamos!  Não porque mereçamos, mas porque assim o deixamos, apostando sempre na remissão como força motivadora. Perdoem-me se a metáfora não for boa, mas, os professores de hoje, somos ilhas de emoções saturadas, rodeadas de obrigações por todas os lados, prestes a serem inundadas, sem que nenhum apoio lhe sejam efetivamente dado. E o que é mais estranho: a liberdade, tão duramente re-conquistada, muitas vezes, nos dias de hoje, ao em vez de nos libertar, nos amordaça. O calar-se parece prevalecer ao professor dentro da sala e fora dela. Direito à cátedra já era, parece.
Sem direito também à subversão, no sentido que Freire teria pensando quando propôs mudar os rumos da educação escolar em seu tempo (trazer para si a responsabilidade de transgredir e intervir na ordem das coisas), acaba abrindo mão de sua(s) competência(a) para assujeitar-se às ordens sutilmente dadas sob a forma de recomendações e convites.
Claro, nem todo professor é e nem quer (nem deve) ser tachado de indisciplinado, mesmo se indisciplinado for. O problema é que, nos tempo de hoje, fazer o certo insinua-se desconfortante, inseguro, gera medo e desonra. Melhor então engolir sapos do que subverter a ordem das coisas. O colega que talvez tenha me acusado de pusilânime tinha razão. São muitas as atribuições obrigadas e obrigatórias. E aquele silêncio ensurdecedor durante a reunião (mesmo quando provocados) causa-me mais incômodo do que o barulho de há pouco.
- Então, aproveitem o tempo livre e estudem, professores!
Que tempo livre? O silêncio mais uma vez assentiu ao convite sutil. Não à toa, das inúmeras obrigações atribuídas ao professor hoje em dia, dar aulas é a de menor importância para a educação dita oficial (apenas mais uma, sem querer ser repetitivo, embora já sendo, porque às vezes é preciso). A mais desprovida de valor, embora a que sirva ainda aos anais da educação.
As outras são, na maioria das vezes, indigestas por serem demais controversas (além de burocráticas). Mas estão cada vez mais ocupando nosso tempo, é verdade, como disse o professor de filosofia.  Entre elas, a de preencher papeis, por exemplo (sutilmente mascarada em tarefas didático-pedagógicas). Ás vezes, chego a pensar que sou um daqueles antigos burocratas do serviço público batedor de carimbos presentes nas crônicas de Nelson Rodrigues. Tem também a obrigação de ouvir como dar aulas e a de como agir pedagogicamente. Isso mesmo, essas duas novas obrigações (além de obrigações) impõem ao professor o comando de como se portar como professor o tempo todo (sutilmente, claro). É como se professor não fôssemos. Ás vezes é como se nada fôssemos mesmo (assim nos sentimos, mas por obediência e virtuosidade não nos dizemos). Pouco importa os anos de faculdade, os anos de giz e pó na cara. A escolha foi nossa.
- Toda colaboração é bem vinda, professores?
Pura provocação. Por que o que dizer, se tudo já fora dito? Ao professor, somente o assentir. “Como se não bastasse, agora teríamos de ser ‘gestor’. Ora, se nem mesmo à prática administrativa das corporações modernas ele (o gestor) serve mais, conforme o próprio guru dos novos administradores! (Estou me referindo Knitz). Por que servirá ao professor?" Pensei em vez de dizer por respeito ao colegas. A vontade de ir embora, depois de horas em sala, diante de 30/40 alunos, reforçava o espírito de engolidores de sapos que nos tornamos. 
Eis que, de surpresa, uma professora que até então não havia esboçado sequer um sorriso, um assentir de cabeça, levantou a mão. Semblante cansado e teso. Lábios trêmulos e olhar de resignação. Talvez um sapo não tenha passado pela garganta tão facilmente. Estava entalada. Precisava cuspi-lo.
- Pois não, professora.
Disse o imediato com quem diz por ofício. A professora abaixou a mão e cuspiu:
- Por que quanto mais a gente ouve ou ler sobre propostas didático-pedagógicas, em especial para a escola pública, com a qual aparentemente todo mundo se preocupa, a gente se depara cada vez mais com a dificuldade tremenda de compreender o que se quer que a gente ensine e dê conta de ensinar?
Uma das mais belas cuspidas que já ouvi. O “a gente”, então, foi preciso porque também sempre me sinto assim. Parece que as coisas não são mesmo para serem sabidas. Faz parte talvez do desabono do professor. 
Com todo cuidado que a função cobra de nós (e a experiência também), acho que todos os professores, sobretudo os mais jovens, devessem cuspir sapos de vez em quando. Faz bem, de vez em quando. Como me fez tantas vezes. Como fez para a colega professora da reunião. O seu semblante de repente amoleceu, esboçou um riso (se alívio, mas riu). Quem sabe, assim, um dos mais sinceros saberes à pratica educativa dito por Freire, desprezado por muitos de nós mesmos (por isso aqui o parafraseio), volte à baila um dia:
“Se a todo educando (a), o respeito à autonomia de aprender com liberdade (o que é certo); a todo professor (a), todos os direitos, inclusive o de ensinar a aprender com a igual autonomia e liberdade do educando.

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