Duas margens de um rio

 


Sentado à margem do rio, o menino lembrava-se do que ouvira do pai tantas vezes:

- Se você quer chegar à outra margem, como eu, comece a construir seu próprio barco.

Ao voltar para casa, prometeu a ele mesmo: ia construir seu próprio barco.

No dia seguinte, depois de terminadas as tarefas, que ficaram para ele todos os dias – primeiro o curral, as galinhas, depois os porcos - voltou à margem do rio. Arrumou o local, próximo à margem, cortou madeiras e arranjou cordas.

No outro dia, deu início a construção.

Lá pela terceira semana de trabalho, quando voltava da busca por mais matéria-prima para construir o barco, notou a presença de um estranho, em pé, a admirar a paisagem. Era outro menino, mais ou menos de sua idade, só que um pouco maior e bem vestido.

O menino que construía o barco, no entanto, não se sentiu incomodado com aquela presença, apenas achou estranho, e retomou o trabalho.

Depois de um tempo, o estranho menino virou-se e perguntou, ao vê-lo mexendo com paus e cordas:

- O que está fazendo?

- Um barco.

- Por quê?

Embora não à vontade com a pergunta, que lhe pareceu um tanto invasiva, o menino que construía o barco respondeu:

- Para chegar do outro lado do rio como meu pai.  

Voltando a contemplar a paisagem, com ar de empáfia (sem ser de fato), o menino bem vestido disse:

- Eu não perguntei “para quê e sim “por quê”.

- Ué, e tem diferença?

- Claro. “Para quê” é para finalidade e “por quê” é para explicação. Não aprendeu isso na escola?

Encabulado, o menino que construía o barco achou aquela resposta, além de difícil compreensão, um tanto grosseira. E apenas disse:

- Não existe escola desse lado.

Ao ouvir a resposta, o menino estranho reagiu com estranheza apenas, fixando-se novamente na paisagem. O menino que construía o barco então perguntou:

- Você não é desse lado, é? Nunca lhe vi por aqui.

- Já fui. Agora sou do outro lado.

- Desde quando?

- Desde que meu pai me levou daqui.

- De barco?

- Não sei. Eu era muito pequeno.

Um breve silêncio. O menino estranho continuou a admirar a paisagem, e o menino que construía o barco voltou a construir o barco.

Depois de um tempo, o menino estranho insistiu na pergunta:

- Mas, e aí? Por quê?

- Por que o quê?

- Resolveu construir o seu próprio barco, ora?

De repente, veio à cabeça do menino que construía o barco a única explicação possível para aquele momento, porque agora sabia que havia diferença entre “por que” e “para quê”:

- Porque eu aprendi como meu pai.

- E o que o seu pai lhe ensinou?

- Ele sempre me disse que a gente tem de construir o próprio barco se quiser chegar a outra margem.

Ao que o menino bem vestido novamente reagiu com estranheza:

- Sério mesmo? E você o que acha disso?

- Acho que faz sentido. Meu pai disse que a vida lhe ensinou assim e ele ensinou para mim.

O menino bem vestido, parecendo um pouco soberbo (mas não sendo de fato), sentou-se sob a sombra de uma árvore que ali havia e pareceu sorrir. Depois disse:

- Pois eu já atravessei de lá pra cá e daqui pra lá tantas vezes que já perdi a conta.

O menino que construía o barco achou aquela informação de fato soberba, mas ao mesmo tempo oportuna, porque talvez confirmasse o ensinamento que teve. E se apressou em saber do outro:

- Então você já construiu seu próprio barco?

- Não!

- Não? Como assim, não?

- Ora, foi meu pai quem construiu para mim.

Desta vez, o menino que construía o barco também reagiu com estranheza.

- Ué, então que gosto tem nisso?

- Nisso o quê?

- Chegar a outra margem sem ser  no seu próprio barco?

O outro respondeu, agora deitado à sombra da árvore, tendo o tronco desta por cabeceira:

- É meu, só não construí.

O menino que construía o barco achou ainda mais estranho o que  acabara de ouvir, preferindo o silêncio. O menino bem vestido, não. Indagou:

-  Quer saber? Assim como você eu também aprendi com meu pai.

Demonstrando um interesse discreto, o menino que construía o barco interrompeu o silêncio e perguntou:

- E o que seu pai lhe ensinou?

- Quer mesmo ouvir?

Mesmo temendo ouvir algo inapropriado, dada a pergunta impetuosa, o menino que construía o barco não viu nenhum problema em dizer “sim”. O menino estranho então respondeu:

- A pilotar.

- Pilotar?

- Sim, pilotar. Meu pai sempre me disse que antes saber pilotar um barco do que ter de construí-lo sozinho.

O menino que construía o barco titubeou, embaraçou-se com o que disse o outro e pôs-se a refletir sobre seu trabalho. Quanto tempo levaria para construir seu próprio barco! Quanto tempo levaria para chegar a margem do outro lado! E ainda teria de aprender a “pilotar”.

Nisso, achou melhor perguntar ao menino estranho, quem sabe ele tivesse se equivocado:

- Espera aí! Não seria remar?

- Se o barco for pequeno. Barco grande a gente pilota. 

- Isso foi seu pai também que lhe ensinou?

- Sim.

Ao ouvir aquilo, o menino que construía o barco começou a achar a conversa bastante construtiva. E pensou então em ser gentil com o outro. Um pouco de água, quem sabe, pois era o que tinha ali na mochila. Mas, ao voltar-se com a água, o menino estranho já não estava mais lá. Tinha ido embora de repente.

O tempo passou muito depois daquele dia.  

Apesar da lembrança do menino estranho, o menino que construía o barco permaneceu firme ao ensinamento que recebeu do pai. Mas só terminou seu primeiro barco quando já era homem feito. Mas aí a margem do outro lado já não tinha a mesma paisagem.

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