O labrador, o galo metido a valente e a raposa, a esperta


Desprezado pelas galinhas, que estavam fartas de suas batidas de asas e canto misóginos, o galo resolveu abandonar o galinheiro. Ia tentar cantar em outros terreiros.

- Afinal, galo que não canta não encanta.

Para alívio das penosas, partiu ao raiar de um novo dia sem se despedir.

Depois de muito caminhar, pois voar não conseguia, resolveu pernoitar numa velha palhoça de caçadores que, a princípio, parecia abandonada.

Ao entrar, bicou dois filhotes de calango-verde e outro de camundongo que saíram depressa.  Ainda era um galo forte e valente, pensou.

Na verdade não passava de um ganizerzinho, filho de uma ciscadora. Procurou o canto, que não veio, e foi dormir, pois já era quase noite. 

No outro dia, porém, ao em vez de despertar com um belo canto, foi despertado por um bravo labrador que ali fazia morada. Na coleira constava uma estrela de xerife - o que deixou o pobre do pedrês ainda mais assustado.

Tentou contemporizar, mas parou imediatamente ao ver os caninos do feroz animal saltando da boca. E se tinha uma coisa que o canino não suportava era ser incomodado por um canto goguento de galo metido a valente. Nos tempos de hoje, seria chamado de galofóbico.

Ao tentar de novo, sentiu o rosnar forte do cão bem nos seus ouvidos – sim, galináceos têm ouvidos e o labrador, com cachorro que era, sabia bem onde ficava: logo atrás dos olhos.

- Valei-me minhas asas!

Gritou a ave, danando-se a correr em desespero, enquanto se esforçava por um voo que não vinha. O enorme labrador não estava pra brincadeira.

Por sorte, quase sucumbindo, avistou um arbusto de figueira adiante. E, como por milagre, conseguiu que as asas batessem e o levasse a um dos galhos sobressalente da árvore.

Ali ficou na esperança de que o cão estivesse desistido do seu intento. O que não aconteceu. Disposto a acabar com a raça do galináceo, o cachorro deitou-se sob o oco de um dos lados do tronco da árvore sem que este tivesse visto. E esperou.

Minutos depois, a fim de se certificar de que estava sozinho, ainda se desfazendo do susto, o galo tentou em tom amigável:

-  Oh, amigo, já ouviu falar da Declaração Universal da Amizade entre os Animais?

Naquele momento, uma raposa faminta vermelha que passava pelo local alegrou-se ao ouvir galo. Estava bem ali o seu jantar afinal. Metida a esperta, como não podia avistar o cachorro que repousava do outro lado do tronco, fingiu ser ela o destinatário:

- Estás a falar sozinho, amigo Galo? Fui eu mesma quem lhe trouxe a boa nova semanas atrás. Não te lembras?

O galo então se assustou mais ainda ao avistar a raposa. Agora o perigo era dobrado. E como saber se era esperta ou não? Melhor não arriscar. E procurou espantá-la gesticulando como se dizer quisesse do risco que ela corria.

- Ora, desces já daí amigo, pois trago outra boa notícia que vai encher teu coração de alívio e alegria.

O galo, mesmo desconfiado, se mostrou curioso:

- E que boa notícia é esta?

- Sabia que até os cães que tanto ladraram contrário estão de bem com novidade agora?

- Verdade?!

- Sim. Vem me dar um abraço e vamos ficar de bem também!

Disse a raposa esperançosa de que o galo caísse logo em sua lorota. A fome a estava matando.

O galo então respondeu também esperançoso de que o cão a botasse para correr logo e os dois fossem embora dali:

- Então vamos chamar nosso novo amigo cão que dorme aí no tronco para comemorar conosco. Vai ver ele é o único cão que ainda não está sabendo dessa outra novidade. Sabia quase me estraçalhou ainda há pouco.

Alheia de fato ao perigo que corria, e louca pra matar a fome, a raposa recorreu a mais um expediente de lorotagem:

- Achas que eu já não fiz isso, amigo galo? Achas que eu ainda estaria aqui botando minha vida em risco por tua causa?

- Olha lá, hein! Vou descer. Minhas esporas estão bem afiadas.

Disse o galo, querendo tanto acreditar na verdade da reconciliação. Quase pulando do galho pois já não o aguentava mais por poleiro.

- Não duvides, camarada! O amigo cão acabou de me dizer que não vê a hora de que desças para poder pedir-lhe desculpas pelo ocorrido. Não é camarada, cão?

Não tinha como nem por que duvidar mais da raposa. Afinal, assim como os humanos, os animais também mudam. Pulou do galho.

Mas antes mesmo que chegasse ao chão, viu que a selvagem canídea tinha mentido de novo e já se preparava para abocanhá-lo. Na tentativa de arremeter, deslocou uma das asas e cacarejou bem alto.

Nesse momento, saindo do tronco, o labrador avançou sobre os dois ferozmente. Só não os estraçalhou por pura piedade. A raposa uivou mata a dentro e o galo voltou para o galinheiro, para má sorte das galinhas..

 

MORAL DA HISTÓRIA: DIANTE DE FALSAS VALENTIAS E ESPERTEZAS, É MAIS INTELIGENTE E PRUDENTE SE FINGIR DE BOBO.

 


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