Educação e pandemia: oportunidade para a transgressão por meio da crítica*
A traição das imagens (1929) de René Magritte
Conhecer o momento atual,
em todos os seus aspectos (sociocultural e econômico), acaba por nos levar a conhecer
também, e necessariamente, nosso passado, sobretudo o recente – eu diria pelo
menos as quatro últimas décadas - o que nos levará a pensar, também, se a
pandemia do Covid-19 foi ou não um acaso da história.
A meu ver, acaso ou não, a pandemia foi um golpe no
sistema que historicamente pretende parecer-ser
socialmente homogêneo. Testemunhamos mais uma vez que os acasos humanos, que
nem sempre surgem em forma de catástrofes naturais, têm servido muito mais a
uns (poucos) que a muitos outros – e aqui talvez resida a Pedagogia Cruel do
Vírus, levantada por Boaventura de Sousa Santos. Novamente ratificamos em nosso
tempo que somos uma sociedade de humanos historicamente dividida e afirmativamente
exclusivista e seletiva – embora disfarçada, aqui e acolá, de plural e
inclusiva.
De um lado, os “cidadãos”
(aqueles que têm a tutela dos direitos oferecidos pelo Estado) e, de outro, os “não
cidadãos” (aqueles cujos direitos lhes são negados em detrimentos daqueles
outros poucos). Foi ou não foi isso que vimos na pandemia em todo o mundo? O
número de mortes, quem foram os mortos e de que lado do planeta estavam? O
resultado não nos deixa dúvidas de que vivemos num mundo cruel. E pior é que
muitos de nós acaba por naturalizar essa crueldade sistêmica.
No Brasil, a
exclusividade ficou muito mais aparente. Coincidiu com mais um, e não menos
catastrófico, acaso: a vitória política de um projeto conservador e veladamente
autoritário, confirmado pelo desejo da maioria de brasileiros, entre os quais, muitos
não cidadãos de fato. Depois de uma década de estabilidade econômica e social,
o país volta ao chamado “Mapa da Fome” diagnosticado por organizações
internacionais.
Em nome de uma “cidadania
do bem” e motivado por um sentimento homofóbico, racista, misógino, pseudo
cristão e de ódio às minorias, por aqui chegou-se até mesmo a questionar a validade
das pesquisas científicas e, pasmem, a fomentar o desumano desejo de decidir quem
tinha ou não direito à vida diante do caos desvelado pelo vírus.
Na educação, em especial
na educação pública, o desastre só não foi maior graças aos professores,
conforme disse Antônio Nóvoa, em webconferência do Instituto Iungo (“Os
professores salvaram a escola”) – talvez o único teórico da educação que tenha
tido coragem de sair em defesa dos professores.
Menos preocupado com a
educação e mais em “punir” os educadores, criou-se um rápido e caro sistema
Remoto de ensino que nada, ou quase nada, acrescentou na aprendizagem de crianças
e jovens. Só servindo, mais uma vez, para confirmar quem são os excluídos e os
filhos destes também no vasto e discriminado espaço educacional.
Sobrou também, claro, e
muito, para os professores que, além de inúmeros outros afazeres lhes
atribuídos, muitos tiveram que se reinventarem para o exigido engajamento ao
mundo cibernético, sobretudo pela baixa remuneração, que mais que dificultou (e
ainda dificulta) o acesso às tecnologias de ponta para realização de uma boa
pedagogia por meio do exercício remoto.
Diante disso, “repensar o
passado para refletir o presente”, como disse a filósofa Scarlett Marton, em
sua palestra sobre os filósofos rebeldes (Folcault, Deleuze e Derrida), é cada
vez mais necessário. E refletir o presente significa encarar a realidade com
olhar crítico, tomar decisões e transgredir o que está posto se for o caso. Conforme
Marton, “só há espaço para criação e invenção no espaço da crítica”. Impossível
irrelevar, no contexto atual, a aplicação deste pensamento no espaço
educacional que se pretenda um espaço democrático e plural.
Aos novos candidatos a
professores/professoras, portanto, sobretudo aqueles que almejam trabalhar na
educação básica e de responsabilidade estatal, é de grande valia para sua
formação como professor conhecer o momento em que vivemos, em todos os seus
aspectos, para melhor mediarmos a relação do estudante com o conhecimento
técnico-científico, identificando valores individuais e coletivos e
proporcionar a prática da transgressão por meio da crítica. Até porque,
concordo com o que nos ensina Marton: “No momento atual, não há espaço para
revoluções”
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