O fiel capataz e a andorinha


O fiel capataz e a andorinha

Ilustração do autor Betto Ferreira

Era uma manhã de sol de São Sebastião, o padroeiro dos rebanhos. Antes de ir ao alpendre da casa grande falar aos agregados, como sempre fazia em tal ocasião, o fazendeiro percebeu uma agitação diferente. E não era de expectativa.

Chamou um dos capatazes, o de maior confiança, e pediu a este em segredo:

- Veja o que se passa!

Assim fez o capataz. Disfarçado, se meteu no meio dos agregados que  ali já estavam há um bom pedaço de tempo à espera do que o patrão tinha para lhes dizer.

- A mesma lorota de sempre!

- Agradecer o santo.

- E a nós que bom, nada.

- Nem sequer “muito obrigado”.

Aqui e acolá, o capataz sentia o desconforto dos agregados que eram muitos, entre homens e mulheres descontentes. Todos vividos ali desde a origem, assim como ele. E que, certamente, assim como ele, sequer conheciam outras terras.

Verdades que tantas vezes também sentiu vontade de dizer. Mas, diferentemente dos agregados, por ser quem era: um capataz, não tinha a quem. Por isso, muito do que ouvia, lhe tocava o coração. E ia tomando as dores.

Pensou em como contar ao fazendeiro os maldizeres que ouvira. Mas não podia deixar transparecer algum tipo de sentimento. Era um capataz de confiança e confiança era tudo. Além disso, conhecia bem o patrão. Mal de todo não era, mas bom também não. Jamais iria compactuar com o as suas insatisfações. 

- Já lhes dou trabalho! Ingratos!

Era assim. Embora não parecesse, o coração era leve demais para ouvir tantos e tristes desconfortos. Basta! 

Mas, ao sair do meio de sua gente, deu pela conversa de dois homens que se mantinham mais afastados. Quis ouvir. O assunto da conversa era sobre pássaros e o desejo de ser livres e dignos como estes animais.

Nisso, ocorre-lhe uma ideia que o fez se disfarçar ainda mais. Os dois homens falavam de liberdade certamente. Talvez não soubessem, no entanto, que, para voar, os pássaros faziam grande esforço. Alguém tinha de dizer.

Àquela altura, o fazendeiro estava num pé e noutro. A demora do empregado o incomodava. O suor caindo no rosto também. Coisa boa não era. Sempre desconfiou da ingratidão do povo. Praguejou:

- Ingratos!

Ao ver o capataz, que adentrou a casa pelos fundos, o fazendeiro o levou para um lugar reservado. Conversaram por alguns minutos, entre gestos convergentes e divergentes.

No que pareceu ter aceito o que o capataz disse, o fazendeiro vacila, tonteia e desfalece. Antes de ir ao chão, é ajudado pelo capataz.

Ofegante e sem forças, sob olhares assombrados dos outros transeuntes da grande sala, o fazendeiro ouve do empregado um gesto de fidelidade:

- Fique tranquilo, patrão, conheço bem aquela gente.

O fazendeiro, então, é levado pelos outros, enquanto o capataz se dirige ao alpendre. Ia pôr em prática o que prometera, ainda que, até ali, não soubesse como.

Diante da surpresa dos agregados, ao verem sua figura saindo do casarão, ao invés do patrão, o capataz tempera a voz, como a se libertar de um engasgo.

O burburinho aos poucos fenece, dando lugar a um longo e desconfiado silêncio que toma conta do amontoado de gente. O que fazer agora! Não podia deixar de ser fiel.

Naquele momento, como por um sinal, uma andorinha-ribeirinha pousa solitária no alto do alpendre para, em seguida, revoar ao encontro do bando que acabava de sobrevoar o céu do casarão.

O capataz espia a cena de longe, como para encontrar inspiração. De novo tempera a voz e, apontando para as andorinhas, finalmente, diz:

- Estão vendo as andorinhas?

Os olhares da gente, alguns já preparados para a lida, munidos de enxadas e foices, se voltam para o alto.

- São livres porque sabem quando é tempo de voar e de cantar.

Quebrando o silêncio, uma voz anciã soa do meio dos agregados:

- Que diabos ocê tá querendo dizer, home? 

Outra voz, mais jovem, também ecoa:

- Rapaz, num tamos aqui para ouvir um capataz falar de andorinhas. 

O capataz continua de forma solene, como se fosse o próprio fazendeiro:

- E, porque sabem o que fazer, nunca voam nem cantam sozinhas. 

E outra voz, mas ao fundo, também gritou:

- Mas nós não somos andorinhas, capataz, somos gente!

Sem se deixar afetar pelos risos provocados pela ironia do outro, o capataz completa:

- Mas nem todo voo é feito somente com asas. 

Naquele momento, parecendo completamente restabelecido, o fazendeiro surge no alpendre do casarão. Ao vê-lo, o capataz se recompõe, mas sem antes dizer:

- E o esforço do voo, um dia, será compensado pelo canto da dignidade. 

O fazendeiro, que também admirava os pássaros, se dirige aos agregados com um velho bordão tantas vezes ditos a eles:

 Assim nos ensina as andorinhas. 

Os agregados, como nunca antes haviam feito, aplaudiram descontraídos. E o fazendeiro, satisfeito e envaidecido, encerrou a celebração:

- Agora vão, e que São Sebastião os abençoem!

Em pouco tempo, o terreiro ficou vazio. O fazendeiro ficou todo orgulhoso do empregado. Ele era realmente fiel. 

O capataz também ficou, mas tempos depois, ao saber que os agregados fizeram quem nem as andorinhas.

Comentários

Mais lidas no blog

CRASE: um fenômeno lingüístico

Acentuação gráfica, para quê?

Sobre trabalho, dar aulas e resignação

A ferradura, o casco e os sapatos

Um carneiro e os outros