O cão e a loba

 Nossos sentimentos, nossas emoções e nossos

comportamentos são a parte da Natureza em nós(...).

Quem se submete a eles não pode possuir a autonomia ética.

Kant.

 

 

           

Ilustração do autor Betto Ferreira
Na falta de machos, uma vez que a imensidão da floresta tornava os lobos mais dispersos, certas lobas estavam se debandando para o lado dos cachorros, já que são um tanto parecidos. Ansiavam desesperadamente por um caçador raçudo ou mesmo um vira-lata que fosse.

            Numa tarde infeliz, encontrando um belo Cão, uma Loba atacou:

- Olá, cachorrão, te acho o maior gato! Que tal darmos umas voltinhas pela floresta?

Surpreso com a cantada da loba, o cachorro gaguejou:

- Minha cara loba..., pelas aparências, sei que a  gente tem tudo a ver... Mas não é bem assim..., tenho lá minhas cachorras... e não ia ficar bem se me virem por aí com uma loba...

- Ah, não sejas homem, cachorrão!, apelou a loba , avexada. Para que tantos pormenores? Ainda por cima, nós, as lobas, somos muito mais charmosas que aquelas belezinhas domésticas...

O cachorro, verdadeiro caráter, atalhou-a:

- Minha cara loba, não se trata de ser homem ou não, o problema é que as cachorras são como as mulheres: doces criaturas, sensíveis como as flores e agradabilíssimas; portanto, não merecem ser traídas.

A loba, não perdendo o rebolado, tentou mais uma vez:

- Ah, é! E o que o cachorrão me diz destes meus olhos reluzentes, presentes da mãe natureza? Têm as cachorras mais belos adornos?

- Não me sirvo de detalhes promíscuos, minha cara loba, retrucou o cachorro, formalmente. Porém, sei que cachorras que se prezam não têm o que a mocinha aí tem de sobra...

-          E o que é?, perguntou a loba, desconfiada.

O cachorro encarou-a com um olhar incrédulo, como se não pudesse acreditar no que estava vendo. Daí arrematou:

- A falta de vergonha na cara! Que coisa mais feia, minha cara loba, essa de ficar dando em cima de seu primo mais próximo! Talvez seja por isso que sempre vivemos tão distantes! Já não basta o primo lobo, coitado, que vive arriscando a pelo nos becos das trevas, em prol dessa infeliz raça!

Dizendo isso, o cachorro se foi indo para onde estava indo quando fora abordado pela loba, e certo de ter obstruído o intento da prima. Esta, sentindo-se a própria rejeição em loba, botou o rabo entre as pernas, deu alguns passos, como se para ir embora, voltou a olhar para o cachorro e disse:

- Não acreditaste que eu falava sério, não é primo cachorro? Só queria mesmo era ter certeza dessa tua fidelidade, pois só se fala nisso por aí.

O cachorro, sem lhe dar mais ouvidos, seguiu garbosamente seu caminho. Quem sabe, para se encontrar com uma de suas cachorras.

Quando a noite chegou, todos ouviram, mesmo que não quisessem, a solidão na floresta.


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