O cozinheiro e os ratos

Ilustração do próprio autor do texto: Betto Ferreira

Depois de muito caminhar, um viajante, com sua mulher e seus dois filhos, entrou numa humilde taberna e pediu qualquer prato que ali houvesse, pois estavam varados de fome.

Minutos depois, o taberneiro voltou acompanhado do cozinheiro que empurrava um antigo carrinho-buffet de madeira onde estava o prato do dia.

- Senhor, aos olhos pode não agradar; mas, modéstia à parte, este prato é o mais pedido em toda a região, e foi preparado por este humilde cozinheiro que a vos serve, disse o taberneiro.

O homem experimentou da comida e achou muito bom. A mulher também. Um dos filhos igualmente. Em pouco tempo devoraram toda a comida.

Se sentido gratos, o homem, a mulher e o filho agradeceram ao cozinheiro pela excelente refeição.

- Vê-se que é um homem de talento, amigo, porque cozinhar é uma arte, diga-se, disse o homem.

- Obrigado, senhor. Só sinto não ter agradado a todos, disse o cozinheiro, indicando com os olhos o outro filho do casal que nada havia comido, e se retirou cavalheirescamente.

Percebendo o espanto do casal com a recusa do filho, o taberneiro foi amigável:

- Experimente, rapaz! se não gostar, seu pai não pagará pela comida.

- Não tenho fome, senhor. Disse o jovem sem levantar a cabeça.

Incrédulo, o pai se apressou em se desculpar pela desonrosa atitude do filho. Levantou-se e levou o rapaz a um canto da taberna para que este lhe desse uma explicação.

- Vi que olhavas com nojo para a comida. Como podes fazer dos olhos o teu paladar, filho¿ Estais faltando com respeito aquele bom homem – se referindo ao cozinheiro - e envergonhando a mim e tua mãe.

Diante do pequeno sermão, o rapaz ergueu a cabeça e repetiu ao pai o que disse ao taberneiro, quase como um segredo:

- Pai, é verdade! Estou sem fome.

- Como assim estás sem fome? Estamos a pelo menos um dia sem nada no estômago e não tens fome. Impossível!

Nesse momento, segurando uma caixa de vidro com dois ratos e uma fatia de queijo dentro, que fora buscar na cozinha, o taberneiro chamou o homem e disse que precisava lhes mostrar algo.

Sem entender bem o propósito do taberneiro, o homem se afasta do jovem e, ao lado da mulher e do outro filho, atende ao chamado. O taberneiro pôs a caixa sobre a mesa e disse para observarem bem o comportamento dos ratos.

Passados alguns segundos, o menino, mais intrépido que os pais, exclamou:

- O rato marrom comeu quase todo o queijo enquanto o cinza permanece intacto, parecendo dormindo.

- Sim, é curioso. Mas de certo que isso não tem a ver com cor! Disse a mulher.

O taberneiro novamente interferiu:

- Sim, não tem nada a ver com cor. Mas preciso lhes contar: faz muito tempo eu vivi na Índia. Lá, ainda jovem, mas já habilidoso na arte de cozinhar, como você bem disse - se dirigindo ao homem - eu conheci um velho pensador. Seu nome era Kabir e beirava os 80 anos. Ele ia sempre à taberna onde eu trabalhava como cozinheiro. Certa vez, ao perceber meu entusiasmo diante da excitação dos clientes com os pratos feitos por mim, ele me chamou à mesa. Eu fui.

“Você é realmente um excelente cozinheiro, rapaz, eu sou testemunha de sua habilidade. Entretanto, não se engane: a excitação alheia nem sempre tem a ver com o que a gente oferece, mas com o que o outro está naturalmente apto a aceitar” ele me disse.

- Mas o que ele quis dizer com isso?, perguntou o homem ainda tentando encontrar o nexo entre aquele momento e o relato do taberneiro.

- Foi exatamente o que eu indaguei a ele, disse o taberneiro. Continuou:

- Naquele momento, Kabir se curvou e retirou de sua mochila esta caixa de vidro. Sim, exatamente esta. Dentro havia dois ratos como estes, exatamente como estes, e, em seguida, pediu para que eu trouxesse o melhor queijo que ali havia. Eu, claro, o obedeci. Ele pegou o queijo e, depois de avaliar bem a guloseima, disse para eu jogá-la dentro da caixa de vidro e observar o comportamento dos ratos. Eu novamente o obedeci. Reparei que um dos ratos não se interessava pelo queijo enquanto o outro comia com volúpia. Estaria o rato doente, questionei. Ele disse que não. O rato estava em perfeita saúde, disse Kabir, com um leve sorriso de quem sabe o que diz no rosto.

“Acontece – continuou ele – que aquele rato não está naturalmente apto a aceitar o que você lhe ofereceu. Sabe por quê?”, perguntou.

- Sem saber o que lhe dizer, o velho Kabir mesmo respondeu com o mesmo sorriso de quem sabe o que diz no rosto:

“Ele não está naturalmente apto a aceitar porque mostra-se satisfeito com o que já lhe foi oferecido antes”.

“E o que o fez tão satisfeito a ponto de rejeitar queijo?” perguntei.

“Pedaços de pão velho”, disse Kabir, deixando transparecer bem a marca da ironia em sua velha face.

Ouvindo aquela estória, o filho que recusara a comida se aproximou da mesa. Dirigiu-se ao pai, pedindo desculpas novamente, e explicou a razão de sua atitude, aparentemente grosseira.

- Quando paramos pela última vez para descansarmos, eu resolvi caminhar um pouco para apreciar a paisagem enquanto vocês cochilavam. Logo depois, avistei um grupo de caminhantes como nós que me ofereceram algo para comer. E eu aceitei.

- E o que lhe ofereceram, filho?, perguntou a mãe.

- Não sei. Só sei que comi tudo que me ofereceram, pois a fome me tornava naturalmente apto a aceitar.

- E por que não nos contastes?, quis saber o pai.

O rapaz ia responder ao pai, quando, novamente, o taberneiro interveio:

- Senhor, ... quer saber o que o velho Kabir me ensinou naquele dia?

O homem desistiu de insistir com o filho. Talvez tenha lhe faltado a vergonha, pensou. E voltou as atenções para o que o outro tinha a dizer. A mulher e o outro filho fizeram o mesmo. Diante da aceitação silenciosa da família, o taberneiro respondeu:

- Que nem sempre a culpa é do cozinheiro quando o prato, mesmo bom, não é apreciado pelo outro; mas também do outro que precisa de ter fome para poder apreciar o prato quando bom.

Dizendo isso, o taberneiro se despediu dos caminhantes, dizendo “voltem sempre” e isentando-os do pagamento, e foi à cozinha para fazer o que mais gostava de fazer: saborear os pratos feitos pelo cozinheiro.

- Cadê a vergonha, rapaz?! Disse o pai para o filho que, em seguida, levou um cutucão da mãe. Em fila deixaram a taberna.

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