O voo da tartaruguinha
A escolha de vida que fazemos tem sempre
lugar sobre a base de situações dadas e possibilidades abertas.
Merleau-Ponty
Ilustração do autor Betto Ferreira |
Certa vez, sobrevoando os arredores, a esperta ave de rapina avistou lá embaixo uma jovem tartaruguinha que se arrastava sem destino.
Não pensou duas vezes. Ali estava a saída para o seu plano. Precisava continuar fazendo o que sempre fizera sem levar a culpa de nada.
Desceu rapidamente, em voo rasante, e, de surpresa, fez a ingênua e pueril tartaruguinha encolher-se toda em seu casco.
Depois de alguns minutos, ainda se recompondo do susto, e já sentindo as garras do terrível predador torturando seus ossinhos, a jovem tartaruguinha disse, prevendo um terrível fim:
- Olha, seu Gavião, se quiser me comer me coma que eu não tenho ninguém mesmo nesse mundo.
-Não tenha medo, minha jovem. Disse o Gavião meio que tripudiando da pobre infeliz. Não estou com fome. Acabo de comer um filhote de cascavel.
A tartaruguinha, ainda sem muito acreditar no que acabara de ouvir, esticou o pescoçinho e pôs a cabecinha para fora do casco.
- Na verdade, eu queria era lhe proporcionar uma bela aventura? Disse o esperto Gavião para surpresa da pobrezinha.
- Uma aventura? Como assim?
- Sim. Uma aventura emocionante como você nunca viu.
- Não to entendendo! Resmungou a tartaruguinha.
- O que você acha de poder voar? Perguntou o Gavião.
Dada a sua inexperiência, era de se esperar que a tartaruguinha não pudesse mesmo entender as reais intenções do esperto Gavião. Tampouco medir as conseqüências de um voo dessa natureza. E como toda jovem tartaruguinha ficou saltitante com a possibilidade de criar logo asas.
Por sua vez, o Gavião parecia nem aí para o fato de estar interferindo no princípio natural das espécies. Assim, vendo o entusiasmo da jovem tartaruguinha, ele apelou:
- É que eu já estou ficando meio velho e já não posso mais fazer tudo que fazia antes. Por isso, estou procurando alguém que faça por mim.
A tartaruguinha, infantilmente motivada, arregalou os olhinhos para o Gavião, que se aproveitou:
- Já imaginou como seria maravilhoso você, com toda essa juventude, lá nas alturas, vendo tudo lá de cima, livre que nem eu!
Gritou a tartaruguinha, não se agüentado de tanta ansiedade:
- Eu topo, eu topo, eu topo! O que eu tenho que fazer?
Para o velho Gavião, nada mais oportuno:
- Ta vendo aquelas montanhas ao longe? E apontou para as montanhas ao longe.
- To vendo, to vendo, to vendo! Respondeu depressa a tartaruguinha nas pontas dos pés.
- Lá encima daquelas montanhas há muitos e muitos filhotes apetitosos e de várias espécies. Você terá apenas que ir até lá, pegar os filhotes e traze-los até mim.
- Mas como chegarei até lá? Não tenho asas.
- Calma minha jovem. Para isso, te darei as minhas.
- Mas como vou trazer os filhotes? Não tenho garras. - Bobagem. Para isso, te darei as minhas garras.
E aconteceu que a tartaruguinha cedeu à idéia de voar.
O seu primeiro vôo com as asas e as garras do Gavião foi mesmo um vôo de tartaruga de primeira viagem. Também não foi da primeira nem da segunda vez que a pobrezinha conseguiu segurar os filhotes com as garras e traze-los ao grande pássaro penoso. Levou dias.
Mas, aos poucos, a jovem tartaruguinha foi pegando jeito e, não demorou muito, logo se viu dando altos vôos. Para surpresa do próprio Gavião, aprendeu também a fazer piruetas. E já se sentido livre como o mestre de rapina, chegou a desenvolver seu próprio bico.
Em pouco tempo, não trazia apenas um filhote, mas dois, três e até quatro de cada vez. O Gavião, lá de baixo, era só alegria. Feliz da vida por cada filhotinho que recebia, sem fazer o menor esforço. Era só abrir o bico e tome filhotinho, e mais outro, e mais outro... Quando se via bem alimentado de filhotes, era obrigação da tartaruguinha devolver-lhe as asas e as garras. Era esse o combinado. Caso contrário o Gavião lhe comia até o casco.
E foi assim por muito tempo sem que ninguém percebesse; ou seja, sem que os outros animais da floresta, dessem por conta do responsável pelo desaparecimento dos filhotes. Enquanto isso, o Gavião ria à toa.
Já a tartaruguinha, ao passar despercebida, pois era ainda tão jovem, era quem o servia de filhotes. Talvez por não saber que aquilo não era coisa de tartaruga.
- Não disse que seria uma grande aventura. Gritava o Gavião lá debaixo toda vez que tartaruguinha lhe trazia mais filhotes.
Mas o Gavião, eufórico, como todo Gavião esperto, não percebia que a pequena tartaruga crescia e ganhava habilidade no trato com as asas e as garras que ele mesmo lhe dera.
E o tempo passou.
Passou o suficiente para que a jovem tartaruguinha deixasse mesmo de ser apenas uma jovem tartaruguinha. Virou uma tartaruga adulta. Não sabendo mais fazer outra coisa na vida, e tendo gostado daquela aventura de roubar filhotes, achou que não precisava mais devolver as asas nem as garras ao Gavião.
Ela vivia agora nas alturas, livre, solta e dona de si. Embora vegetariana, continuou a caçar os filhotes indefesos, como seu único meio de viver a vida. Às vezes, por demonstração de liberdade. Outras vezes, por pura necessidade. O Gavião, sem asas, sem garras, já não lhe metia mais medo.
Percebendo, então, que já não tinha mais o domínio da tartaruguinha, agora tartaruga, dona de si e do mundo, o Gavião resolveu bolar outro plano.
Diante da insatisfação dos outros animais por conta do crescente desaparecimento dos filhotes, ele resolveu denunciar a tartaruguinha. Disse que toda a floresta estava lhe dando com a mais terrível dos predadores, com o mais perigos dos animais. Ele mesmo já fora uma de suas vítimas. A tartaruguinha havia lhe roubado as asas e as garras e vinha agindo livremente. Nem mesmo os seus filhotes, coitadinhos, foram perdoados por ela.
- É no que dá a impunidade! Gritava aos quatro cantos da floresta.
E os outros animais, sensibilizados com a sinceridade do camarada Gavião, logo exigiram prisão perpétua para a tartaruguinha. Chamaram-na de bandida, de monstra, e a classificaram como um perigo para as boas normas da floresta. Era preciso tomar uma providência. Ninguém queria mais tartaruguinha na floresta, nem viva.
- Morte à tartaruga! Gritaram todos, num coro eloqüente.
- Morte àquela que rouba nossos filhotes! Gritou o Gavião.
Assim, a tartaruguinha, agora tartaruga, tinha de cumprir uma dupla jornada em defesa de sua vida, se viver quisesse: continuar roubando os filhotes da floresta e, ainda, se esquivar das ameaças da bicharada que a perseguia dia e noite.
Para isso, era preciso parecer cada vez mais monstra, cada vez mais perigosa. Porque, só assim, ela ganhava respeito e notoriedade.
Mas isso não demorou muito.
A tartaruguinha, agora tartaruga, foi presa. Tomaram-lhe as asas e as garras. Julgada, na praça pública da floresta, foi morta.
E todos viram o verdadeiro fim de quem ousa comer os filhotes da floresta.
O Gavião foi declarado herói.
Mas ainda hoje os filhotes da floresta continuam a desaparecer misteriosamente. Há quem acredite que seja o fantasma da tartaruguinha.
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