Educação



O problema não é apenas do rato

Betto Ferreira

A despeito dos debates político-pedagógicos em pauta sobre Educação nos dias de hoje, é preciso considerar dois importantes aspectos: de que educação se está falando e que tipo de educação queremos para nossos jovens?
O levar de um lado para outro conforme sugere a origem latina da palavra ( educare ) não deve ser entendido apenas como sair de casa para ir à escola, trocar de cadeira na sala de aula, atravessar de um lado da rua para outro ou perceber a diferença gráfica dos símbolos.
O ensinar a partir do que sabe o aluno e ficar só nisso mesmo – muitos afirmam até que o fundamental é falar a linguagem do aluno, daquilo que ele gosta, das coisas do seu tempo, etc. -, em princípio parece atitude humanitária, mas não passa de um engodo pedagógico. Isso tudo não  é movimento de um ponto a outro, não é  construir conhecimento, conforme a teoria do construtivismo.
Assim, uma mãe que diz para o filho que não se pode comer com as mãos e sim com os talheres, ao seu modo, e de acordo com as suas convenções,  ela o está educando, uma vez que está fazendo que o filho saia daquilo que ele já sabe (comer usando as mãos, um exercício natural) para aquilo que ele ainda não sabe (comer usando talheres, uma convenção social).
Mas, vista assim, a educação não passa de um conceito ainda muito primitivo, em que todos podem  ser considerados ensinadores, mas não educadores-escolar. O que não se quer  dizer que toda e qualquer iniciativa de se ensinar não seja válida, como é o caso da mãe no exemplo acima. É evidente que sim, mas desde que seja de modo a sugerir algum tipo de reflexão na vida do ser em formação, fazendo que ele reconheça e processe essa (in)formação, o que nem sempre  ocorre  em situações fraternais, pois que tal educação acontece de forma muito natural e pela convivência.
Agora, ao se discutir educação no sentido político-pedagógico, estamos falando da Educação Escolar. Ou seja, daquilo que se ensina ou do que se deve ensinar na escola. Neste sentido, é preciso se pensar no que o aluno deve conhecer na Escola que ainda não conhece. A que outro lugar devemos levá-lo, partindo daquilo (lugar) que ele já conhece da natureza e das convenções sociais? E, principalmente, tarefa das mais difíceis, porque depende de recursos pedagógicos e compromisso profissional, como se faz isso?  Como se ensina o que é de responsabilidade da Escola?
Evidente que conhecer o lugar do aluno se faz necessário, porque antes de qualquer iniciativa também é preciso termos em mente que todo ser, por restrito que seja o seu espaço de atuação, está situado em um lugar do seu tempo. E isso quer dizer que, em se falando de educação no seu sentido mais legítimo (levar de um lugar a outro) não se pode menosprezar tal fato, uma vez que é preciso termos conhecimento da dimensão que o separa daquilo que ele ainda desconhece. Mas o que não se pode é pararmos por aí, ou seja, ficar só no que o aluno tem como visão de mundo. É preciso que, como fundamento inicial da Educação Escolar, o jovem estudante tenha conhecimento disso, sem o que ele jamais entenderá de fato o significado e o verdadeiro objetivo  da Educação Escolar.
Por que estou dizendo tudo isso? Todos já não sabemos desse fundamento básico do ato educacional? Por incrível que pareça, nem todos. Depois de dez anos como professor tenho observado que muitos têm sido os equívocos quanto ao conceito  da Educação Escolar.  Para muitos, a Escola é o lugar do  tudo pode. Em outras palavras, o lugar do oba-oba. Vejo nisso uma precipitação arriscada, seja lá quais forem as razões que nos fazem pensar assim.  A Escola deve ser encarada como o lugar  das teorias, das ciências, das abstrações, das (co)relações entre idéias, das reflexões, das compreensões e interpretações ( leituras) das coisas do mundo; vejo a Educação Escolar como o lugar das pesquisas e do dialogismo1 com os textos teóricos. Assim, a Educação que deve se fazer na escola é a Educação das competências ( aquisição de normas, teorias, fórmulas e formas) e das habilidades ( a prática daquilo tudo que se adquiriu no campo teórico). Sem esse propósito, a Escola na tem razão de ser. Volta-se ao método primitivo e natural de educar. A educação escolar deve provocar a inteligência para o exercício do intecto.
Em uma de suas falas sobre Educação, o secretário da educação do Estado de São Paulo, Gabriel Chalita, como forma de promover a leitura, disse que não se pode querer de um menino que ele entenda um poema do Carlos Drummond de Andrade a fundo. Segundo o secretário, basta apenas que este  sinta o poema. A primeira vista, a intenção do secretário parece incentivadora, mas não passa, a meu ver, de uma conciliação com as dificuldades. Essa coisa de sentimento, de sentir por sentir, está restrito a apenas a um dos sentidos humanos, no toque. A Educação Escolar deve ir muito além disso. Nessa empreitada que é levar de um lugar a outro, a Educação deve envolver todos os sentidos humanos. Ainda mais quando se tratar de leituras das coisas do mundo.  Sentir, neste caso, tem a ver com um toque mais profundo daquilo que se está em estudo. Ou seja, tem a ver com a compreensão e interpretação das coisas do mundo, cuja manifestação deve ser feita, de preferência, pela via verbal da escrita, de responsabilidade próprio da escola, tudo isso a partir de competências adquiridas e de habilidades desenvolvidas na própria Escola. Creio que só na Escola é que é possível aprender e apreender tais conhecimentos, uma vez que é nela que reside a pedagogia para os estudos das teorias. Teorias estas que precisam ser partilhadas, de forma crítica e parcial, do professor para com o aluno.
Seguindo a linha de raciocínio do Secretário paulista – em que se revela uma pseudo postura afetiva - tenho observado muitos professores, em especial de Língua Portuguesa e literatura, que defendem a idéia de que a leitura profunda de um texto só é possível no nível da graduação universitária. Afirmam, com isso,  que antes é preciso tornar possível uma aproximação mais afetiva – não efetiva – do aluno com o texto, sob a alegação de que o aluno do Ensino Médio não é ainda suficientemente capaz de tal grau de abstrações. Sendo assim,  na visão desses professores, uma leitura mais profunda do texto  afastaria de vez o aluno da possibilidade de familiarização com o texto e, conseqüentemente, do gosto pela leitura. Trata-se da famigerada ( e enganosa) teoria do afeto defendida por alguns, entre estes o secretário paulista.
Não sei não, mas vejo nesse tipo de atitude metodológica  um ato de desespero explícito da Escola na relação com o aluno, como se, na falta de uma justificativa qualquer, fosse preciso mantê-lo ali a qualquer custo.  Este, por sua vez, talvez por conta da imaturidade, não consegue se  dar conta do ostracismo em que está sendo submetido. Assim, o mundo da superficialidade, do que está explícito, do aparente, do evidente apresenta-se como o mundo do seu limite possível. O aluno, dessa forma, é visto como um ser limitado e incapaz de sair do lugar do conhecido  ( o que diz o texto) para o do desconhecido, do implícito ( o que o texto quer dizer). Quanto à Escola, em não sendo capaz de lhe proporcionar isso, ou seja, equacionar inteligência e intelecto, torna-se desnecessária e sem valor. Ou seja, não educa no seu sentido stricto.
Portanto, ante a qualquer discussão político-pedagógica que diga respeito às questões de educação, é preciso refletirmos bastante  naquilo que queremos ou pretendemos ensinar aos jovens como profissionais da Educação Escolar que somos. Pois, ao contrário do que se afirma por aí, a pretexto de uma visão afetiva, humanista e democrática, a Escola que faz pensar, elaborar, argumentar e concluir, a partir de competências adquiridas e habilidades desenvolvidas por meio do intelecto, não se trata de  uma Escola elitista e excludente. Estaremos sendo mais desumanos e pouco afetivos - e conseqüentemente muito mais elitistas e muito mais excludentes - se com nossa postura  pseudo-afetiva, não tentarmos levar nossos alunos de um lugar a outro - ao lugar de um novo conhecimento. Ou seja, se não fizermos dos nossos alunos  sabedores daquilo que eles ainda não sabem, como pessoas, mas, principalmente, como estudantes que são. A Educação Escolar, independente do nível social do aluno e de seu grau de cultura, deve ser o lugar  do diferencial – diferente no sentido de ir além do senso comum. Isto é, a Escola deve pôr o aluno em contato com o senso crítico e analítico das coisas do mundo, de forma que transpasse os limites da inteligência natural e alcance o exercício da intelectualidade. Esta sim a verdadeira razão da Educação Escolar. 
Quanto ao título deste texto, creio que alguém deva estar se perguntado: o que tem a ver?  Na verdade, o título faz referência a uma fábula: o Rato e a ratoeira. Preocupado com o fato de o homem da casa ter comprado uma ratoeira, o rato foi se queixar aos outros animais da família:  ao boi, ao porco e à galinha. Como estes não deram importância ao fato, alegando que a ratoeira não era problema deles, o rato se sentiu isolado e desestimulado. Mas, à noite, ratoeira armada, a mulher do homem se faz vítima da armadilha e precisa ser urgentemente hospitalizada. Com isso, o homem se desfaz do boi para pagar o tratamento da mulher; se desfaz da galinha para alimenta-la com canja, conforme recomendação médica, e se desfaz do porco para poder medicá-la. Assim, aqueles que  diziam não ter nada a ver com o problema do rato foram, na verdade, quem primeiro fora atingido pela compra da ratoeira. Como se pode ver, todo  problema acaba sendo de todos.
Como professores, devemos nos sentir também responsáveis pela Educação Escolar de quaisquer alunos. E como tal  temos de nos preocupar de alguma forma em faze-los sair do lugar comum para o incomum, o das idéias, que os permitam uma visão mais efetiva do mundo. Espero que com estas minhas simples palavras eu possa estar contribuindo para o verdadeiro desafio do ensinar ( da inteligência natural à inteligência intelectual), a fim de que a ratoeira da Educação Escolar seja desarmada sem vítimas. Não quero e nem devo pensar que o problema seja apenas do rato.


1 Baktin, Mikail. Filosofia da linguagem e marxismo

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